sábado, 21 de junho de 2025

Inspiração cáustica


imagem: encontro com a poetisa, ensaísta e cronista Mariana Ianelli na Biblioteca São Paulo no dia 14/06/2025 lançamento do livro Desculpa qualquer coisa, compilação dos melhores textos produzidos em 2024 na oficina Ateliê de Criação Literária e edição Celso Suarana(Abarca editorial) pela curadoria de Olyveira Daemon


Terá sido
O mais sufocante verão
Desde décadas
O inverno mais severo
Pouco importa:


Lembrar fará arder a brasa
E os meandros
Serão desses de fumo
Que mal se desenham no ar
Se desfazem.


A mão pensativa
Não mentirá sobriedade
Dançará
Um nome fulvo sobre o papel
Um céu sem nuvens


Dançará esta mão
Menina insolente
Sem quem lhe veja
As pontas dos dedos
Alcatroadas de solidão.

                                         Mariana Ianelli




extraído do site: https://revistaacrobata.com.br/demetrios/poesia/5-poemas-de-mariana-ianelli/




Lembranças de coisas que nunca aconteceram


Lembro do Cembro
Sombreando a casa como um êmbolo coagulado entre o que fui e o que ainda insisto em esquecer
Muitos dias de chuva e tudo começa a embolorar, como se o tempo escorresse lento pelas paredes
Não adiantou deixar alguns pensamentos (os mais importantes) na parte mais arejada da casa... eles também acabaram mofando
Não vou embonar a metáfora
Embornecer arredores para dissolver aos poucos o espesso da ausência
Sob o verniz falso da rotina
Escordar o escórdio não vai te ajudar em nada
Quando a escória se confunde na escoriação
Todo escorjamento é memória da carne negando a própria pele
Ecdise para escornar o arruá
Diálos atorçalado no seu batismo
Acantoado sem adnotação
Sentir-se apartado de tudo é normal
Quando até o ar parece coagulado de culpa
Aninhado entre os músculos, como ferrugem que aprende a falar
Sem reclamar da maresia
O batissófico ainda me inspira
Trófico de um praxe que insiste em me devorar por dentro
Um pouco do ftórico não vai te fazer mal
Quando o teórico já morreu
Sinto falta de pistache
Todo piche que escorre pelas frestas, querendo me cobrir
Onde cada palavra que eu cuspia voltava em forma de nó
Onde a fome era mais de esquecimento do que de sustento
E eu, reduzido ao intervalo entre o susto e a resposta
Fingia controle enquanto me entregava à combustão lenta
Do verbo que nunca deveria ter sido dito
Porque até o erro tem seu ritual.





Glossário:
embonar- Reforçar exteriormente o costado de um navio.
Metal Cobrir molde de fundição com chapa de madeira para permitir posterior fresamento.
Fresamento é um processo de usinagem para criar engrenagens
Embornecer-verbo transitivo mesmo que  amornar
Escordar-Variação de recordar
Escórdio-ubstantivo masculino[Botânica] Menta europeia perene, macia (Teucrium cordium), com flores cuja cor varia de cor-de-rosa a roxa, a maioria axilares; escorodônia.
Arruá-adjetivo[Brasil] Arisco, espantadiço, desconfiado.Indócil, mau, raivoso.Ecdise-substantivo feminino[Biologia] Ato de soltar ou perder o tegumento, como no caso de certos insetos, a pele nas serpentes, a pelagem em certos mamíferos e a plumagem entre as aves; muda. Antôn: êndise.
Diálos-variante de "diávalos" tradução do grego para o português de Diabo 
Acantoado-adjetivo,Posto a um canto; apartado, isolado.
Adnotação-substantivo femininoResposta do papa, mediante simples assinatura, a um pedido.
batissófico-adjetivoRelativo ou pertencente ao conhecimento das profundidades do mar ou às coisas ali encontradas.
Atorçalado-adjetivo,Que foi enfeitado de torçal; que foi adornado com fios de ouro.
Trófico-adjetivo,Relativo à alimentação (de um indivíduo, de um tecido vivo etc.).ftórico-adjetivoQue se refere a ftório; fluórico(flúor).

quinta-feira, 12 de junho de 2025

Surrealismo erótico apocalíptico



extraído do livro: Manifesto contra a felicidade eterna (ou cinco réquiens para uma morte lenta)
Júlio César Bernades 


  
O terno está na lavanderia.
Afinal, não posso ir de qualquer jeito... se for pra acabar tudo, que seja com estilo.
Toda pompa de pompeiano.
Como quem entende que o fim é só mais uma ocasião social, e toda ocasião social exige o traje adequado.
Não, ela não vai pompoarizar.
Não faz sentido multiplicar o que já está falhando em unidade.
Satélites salpicam emoções gaseificadas.
Nova especiaria.
A saudade precisa mais de sal.
Toda saliva dos corpos absorvida
não formou marés.
Foi quando o chão deixou de reconhecer meus pés.
Foi quando a sua teoria da Terra triangular só parecia absurda até percebermos que tudo afunila.
A eternidade agora tem gosto de ferrugem.
Ela entrou no compartimento como compáscuo,
(compassadamente, para não ter a acoplagem).
Quando minha acoprose te incomoda,
deveria agradecer, porque agora o gás metano encontrou utilidade.
Ela entrou na bifurcação como um coquetel molotov emocional.
Um passo em falso e tudo iria explodir.
Recuso-me a ser lixo espacial.
Parafusos soltos podem ser úteis — seguram mais
que estruturas inteiras.
Tive que perder alguns para o insight.
Aceito o vácuo que já não me surpreende.
Antenas uso na cabeça.
Sempre quis ser algum inseto.
Um besouro, talvez,
carregando ruínas nas costas, ou uma barata imortal entre desastres,
indiferente à lógica
dos grandes colapsos.
Minhocas entendem
o valor de cavar no escuro.
Vagalumes, mesmo em queda,
ainda piscam.
Se o universo não me quer humano,
que me aceite com seis pernas
e olhos que enxergam
além do visível.
E toda essa anteneasmia vai diminuir
ante ao antauge.
Sinto falta das antas:
sua calma pré-histórica,
seu andar sem pressa
em direção a lugar nenhum.
Talvez elas soubessem
que a salvação nunca foi
tecnológica.



Glossário:Pompeiano
adjetivo relativo a Pompéia, antiga cidade do Sul da Itália, sepultada em 79 pelas cinzas do Vesúvio
Anteneasmia (substantivo feminino)
Impulso ou tendência persistente ao suicídio; inclinação mórbida para tirar a própria vida.
Compáscuo- substantivo masculino Pastagem comum.
Acoprose-Falta de fezes nos intestinos. 
Antauge-substantivo masculino O mesmo que perigeu(substantivo masculino-Ponto da órbita, real ou aparente, de um astro, quando mais se aproxima da Terra)

sexta-feira, 6 de junho de 2025

O que escapa da sombra



imagem do filme:The Rainbow Thief- Alejandro Jodorowsky- 1990


Associações impertinentes: A bolha, a mácula e o cacto


Não precisa me olhar desse jeito, eu não roubei o arco-íris, e eu não tenho culpa de ser iridescente. Jamais tive qualquer inclinação cleptomaníaca. Brilhar não é crime, pelo menos não da última vez que conferi as leis da física. Se a luz resolve se despedaçar em mim, talvez seja só porque encontrou superfície. Não pedi pra refletir cor nenhuma, só estou aqui, existindo, do meu jeito translúcido demais pro conforto de uns. E sinceramente, não conheço nenhum código, nenhuma corte, nenhum veredito que declare isso um delito. Não lembro de ninguém ter escrito uma regra que proíba beleza acidental. Se incomoda, talvez seja porque revela demais, mesmo sem dizer uma palavra. E não estou sozinha nisso. Já viu as asas de uma Morpho azul? As penas de um pavão? O dorso metálico de um besouro, ou o interior de uma concha de nácar? Nenhum de nós roubou nada, apenas nascemos com esse dom inquietante de dobrar luz até ela confessar todas as cores. Se isso incomoda, talvez o problema não seja o reflexo, mas quem insiste em não querer ver.
Eu só flutuo, até encontrar com a rebutia. Meu túmulo é sarçoso, sua sarcose não é nada perto disso. E mesmo assim você se ofende com o que mal toca. Vive tentando podar o que cresce fora do seu vaso, como se espinho fosse ameaça, quando tudo o que faço é existir em silêncio, entre camadas de ar e tempo. Você esquece que não há pacto entre mim e a terra, apenas uma dança suspensa, leve demais para o seu peso.
Não sou sua ameaça. Sou sua lembrança. De quando tudo ainda era tênue e luminoso. De quando olhar não era julgar, e cor não era afronta. Eu reflito o que você esconde. E isso te fere mais do que qualquer espinho meu jamais poderia.
Não me tornei assim pra irritar. Me tornei assim porque fui deixada em paz por tempo suficiente. Cresci iridescente porque ninguém tentou me cobrir de opacidade. E agora você vem, com sua sarçose domesticada, reclama da intensidade alheia. Se sua estrutura não aguenta um reflexo, quem delimitou a forma e chamou o resto de falha? Você só reconhece o que cabe na sombra, mas esquece que até ela precisa de luz pra existir, por isso resiste ao que transgride seus limites.
Não tenho culpa se você ainda se sente sujo por dentro. Cada um lida com suas cicatrizes como pode. Eu lido com a minha efemeridade como se fosse um fogo delicado que precisa ser alimentado com cuidado, uma chama que sabe que pode se apagar a qualquer momento, mas que escolhe arder com intensidade enquanto dura.




Glossário:rebutia-espécie de cacto

sábado, 31 de maio de 2025

Inspiração urbana




Monólogo de um semáforo



Apesar do vermelho, não há raiva envolvida, estética inflamável. Não confunda intensidade com descontrole. Já quis explodir só pra deixar de conter. Aqui, a repressão veste máscara de calma. Sou o limite entre a pressa e a urgência que ninguém admite, como se o mundo pedisse contenção com a falsa gentileza de quem segura a mão só pra impedir o soco. Sim, eu oscilo, sou instável com propósito. Já fui constância, hoje sou risco calculado com gosto de caos. O verde causa todo esse azáfama como uma azagaia que me fere, ainda me pega desprevenido, como se fosse a primeira vez. Já devia ter virado hábito, mas ainda dói como se cada passagem fosse um abandono. Permitir o fluxo é rasgar um pedaço do que tentei conter, e, mesmo cercado de rotina, há algo de profundamente solitário em ser a pausa entre dois mundos que nunca olham pra trás. Já quis ser pespego, mas este pespeneiro continua a me lacerar, fixando-se no âmago do meu ser. A cidade te mastiga em silêncio e regurgita teus ossos na calçada. Antes, repetia padrões; agora, sou cálculo à beira do colapso, equilíbrio à beira da vertigem. O impulso adiante me atravessa como lâmina, sempre súbito, sempre fundo. Nunca virou costume: cada rompimento ainda me esvazia como se partisse algo que lutei pra manter inteiro. Deixar passar é abrir ferida. Há rotina, sim, mas nenhuma que cure a solidão de ser o instante que separa dois tempos que nunca se pertencem. Já ansiei repouso, mas este movimento sem fim me arranha por dentro, fincando sua permanência onde mais arde. Já quis reverenciar o poeta que fez de mim sua segunda pele, me moldei pra caber no contorno do seu silêncio, se cobriu de mim pra não encarar a própria nudez, me assumiu no corpo, mas nunca na alma. Carrego o rastro do que você esqueceu em mim. Sinto o que deixou em mim, cravado na espinha do que somos, costurado no fio da existência. Está escrito: “O fluxo e o perluxo do suxo se dispersam na imensidão”, ficou como um epitáfio que ninguém lê, invisível ao olhar apressado que só busca atravessar. Quando verdejo, na verdade é um protesto por mais árvores nesta cidade tão cinza, e finjo consentimento enquanto sou corroído por dentro. Observo os corpos se apressando como se corressem para longe de si mesmos, cada passo uma tentativa de fuga, cada olhar um reflexo do medo de parar, porque parar significaria encarar o vazio que habita por trás das buzinas, que gritam mais alto que qualquer pensamento. Sou parte de uma coreografia forçada onde ninguém sabe a música, apenas obedecem ao compasso surdo da pressa. Às vezes queria me dissolver no asfalto, escorrer para os bueiros e sumir com toda essa urgência fabricada, mas permaneço, porque sei que, sem mim, tudo desabaria. Talvez por isso me detestem em silêncio, como se minha existência fosse um lembrete constante de que há algo fora do controle, algo que exige espera, e esperar virou sinônimo de derrota num tempo em que vencer é chegar primeiro, nem que seja ao nada. Quando estou fúlvido, é como se o mundo prendesse a respiração por um segundo que ninguém respeita. Sou o intervalo dourado entre o ímpeto e o impacto, o brilho que antecede o erro, o clarão que avisa mas não convence. Cintilo como um presságio que ninguém deseja ouvir. Sou ignorado com a mesma facilidade com que se ignora a própria intuição. Meu dourado não é luz, é prenúncio, é fratura em forma de cor, e mesmo assim continuo a existir, como se ainda houvesse chance de ser compreendido. Mas já entendi que aqui não há espaço para nuances, só extremos.

terça-feira, 20 de maio de 2025

O Abismo que Lê

imagem:@visionaryaiimagination




A biblioteca era submersa, e um certo desagrado pairava sobre alguém: utilizar vestimenta adequada para imersão prolongada, toda vez que queria ler algo, era um incômodo constante. O traje colava à pele como uma segunda camada fria, e o processo de equipar-se tomava preciosos minutos de preparação. Ainda assim, o verdadeiro desconforto vinha depois, ao adentrar as salas inundadas de silêncio líquido, onde os livros flutuavam presos por correntes finas ou repousavam em estantes seladas, acessíveis apenas com o visor correto e gestos precisos.
O escafandro era aflitivo: apertava a cabeça e abafava os sons do próprio pensamento. A cada descida, a pressão ao redor parecia comprimir não apenas o corpo, mas também a vontade. O ambiente subaquático exigia concentração constante: uma piscada mais longa podia comprometer a leitura, um movimento em falso fazia as páginas se afastarem, vagando lentamente até o teto translúcido do recinto. As palavras, ampliadas pelas lentes, emergiam diante dos olhos como espectros, difíceis de fixar.
Ela era uma arqueóloga subaquática, e isso não era problema para ela, pelo menos não no início. Havia algo quase ritualístico no ato de se preparar, como se cada camada de roupa e equipamento representasse uma transição para outra realidade. Contudo, o que antes era fascínio agora tornava-se desgaste. A biblioteca parecia viva, não em um sentido biológico, mas como uma entidade que reagia à presença humana. A sensação de estar sendo observada crescia a cada visita, embora nenhum sensor ou monitor indicasse anomalias.
Foi depois de um maremoto que tudo começou a se alterar de maneira mais evidente. A estrutura da biblioteca, antes estável apesar da profundidade, apresentava fissuras sutis que não constavam nos registros anteriores. As colunas de contenção, cobertas por corais e sedimentos ao longo de décadas, agora expunham partes metálicas reluzentes, como se tivessem sido recentemente raspadas por uma força invisível. E agora as folhas dos livros estavam espalhadas por todo o espaço, flutuando lentamente pelas águas escuras. O impacto parecia ter rasgado a essência do lugar, fazendo com que volumes antes cuidadosamente organizados se desintegrassem em pedaços dispersos.
As páginas se soltavam das capas, girando suavemente, como se levadas por uma corrente invisível. O silêncio, antes denso e abafado, agora parecia carregado de um peso novo, algo entre o caos e o mistério. As adjacências estavam cobertas por fragmentos de texto, palavras que, antes enredadas na ordem rígida das prateleiras, agora se viam livres, porém dispersas. O lugar parecia um labirinto de letras e pensamentos. Uma poesia encharcada sobre uma rocha seca, com o Sol refletindo na água calma — tudo parecia efêmero, irreparável.
Os pensamentos que antes estavam restritos a páginas perfeitamente alinhadas agora flutuavam sem direção, livres em um mar de incertezas. O cenário que se desenhava diante dos olhos era, ao mesmo tempo, desolador e fascinante. Os fragmentos que antes formavam relatos, teorias e ideias agora se misturavam como uma aquarela desfeita pela correnteza. Ficou mais difícil para ela. Teria mais trabalho agora, para organizar tudo aquilo.
Ela tentou recolher os fragmentos, mas os gestos precisos de antes já não produziam o mesmo efeito. As páginas escapavam das mãos como se possuíssem vontade própria, unindo-se a outras que contradiziam suas origens. Um tratado filosófico fundia-se a uma poesia; uma lista de códigos, com fragmentos de cartas esquecidas. Tudo parecia testar os limites da compreensão, como se aquele espaço tivesse deixado de armazenar conhecimento e passado a criar novas formas de pensamento por si mesmo.
Essa fusão inesperada sugere que o lugar não apenas armazenava memória, mas reconfigurava significados. Talvez estivesse reagindo a uma necessidade não dita, talvez estivesse respondendo a quem ousava mergulhar em suas profundezas. Era como se o conhecimento não quisesse mais ser consultado, mas vivido, intuído, sentido por aproximação, um pensamento líquido, em constante recomposição.

sábado, 10 de maio de 2025

Inspiração hierática


imagem: O navio dos loucos- Hieronymus Bosch

Da Tília provém vitualhas, o legorne empalado no fronde, tudo exige esforço para ser alcançado. Na alheta, um ébrio exige costeleta, cospe penas no pargo ainda vivo, preso por crinas de cavalo em um galho, e grita: AGORA VAI APRENDER A VOAR! O tamborilador de crânios marca o compasso dos que dançam sem sombra, enquanto uma sóror endemoniada entoa ladainhas satânicas em seu alaúde. A ossatura na amura, para roerem depois, serve de troféu ao pierrô cego que calcula estrelas com um garfo.

Estavam desrespeitando o alimento sagrado, ultrajavam aquilo que deveria ser reverenciado: o maná para o manaça, a ambrosia para o ambroso, o sangue para o sedento, a seiva para o espasmo. A quilha regurgita caroços de fruta mastigada por bocas inexistentes. Os que se refestelam sobre um tapete de vísceras confundem-se em risos histéricos. A língua bifurcada da sibila lambe o cálice de fel, e seus olhos ausentes piscam em descompasso com o relinchar da besta disfarçada de anjo.

Tudo é oferenda, mas ninguém agradece. Enquanto o fole do anacoreta estufa e murcha como pulmão em suplício, deixaram aquela anaconda humana à própria sorte. Cada balanço da embarcação é um julgamento, cada ranger da madeira, confissão arrancada da língua por mastigações de silêncio. Não incomode o trasgo. Se tem um vigia, por que deixaram a pândega sair do controle? Talvez para testar os limites, medir até onde a estrutura suportaria a carga da desordem. Há quem invoque o tumulto apenas para observar, e quem se atreve a contê-lo?

Tolerar o desvario pode ser também um modo de reconhecer os que ainda preservam discernimento, os que não se rendem à cadência do exagero. Dos galhos retorcidos surgem murmúrios esquecidos, ancestrais ocultos zelam por segredos entre musgos e raízes. Evite passos ruidosos, pois há pactos selados no convés. A decídua não serve como um mastro, porque sua estrutura natural, com ramificações irregulares e densidade variável, compromete a resistência mecânica e dificulta a fixação de velas ou outros componentes náuticos.

O desvario começou com um sussurro, e agora cresce como hera sobre pedra antiga. Quem ousará restaurar a ordem antes que o breu engula o que restou do juízo?

Vai ter que parar de comer se quiser cantar, engasgo iminente. Depois, não culpe a gluma quando a bruma que você glugluta escurecer as ilhotas de Langerhans.

Lamentamos pelos inconvenientes causados. Desculpe-nos por não oferecer um conforto que seja realmente reparador. Quando o corpo se torna um campo de batalhas internas, sobrecarregado de desejos insaciáveis, não sabe mais distinguir entre necessidade e exagero. Não há retorno quando se perde o caminho entre o prazer e a dor. Nada pode ser desperdiçado, estamos enfrentando escassez de recursos.

Colocamos coletores de alimento. Não se assustem com eles, apesar de suas feições. São irmãos nossos, escolhidos para a tarefa ingrata de recolher o que sobra, vasculhar migalhas entre os dentes, lamber os pratos secos, remexer nas entranhas das frutas podres. Alguns já esqueceram que foram homens, agacham-se nos cantos, farejando o chão como cães famintos, disputando com as ratazanas a última partícula de carne.

Quando o alimento acabar, sobreviverá a fome ou a razão? Vão virar canibais, não por crueldade, mas por desespero, arrancando a humanidade dos ossos uns dos outros, na tentativa de prolongar o inevitável. A ética será esquecida como um livro molhado num naufrágio, e os olhos, outrora cheios de compaixão, buscarão carne, não companhia.

A árvore, no lugar do mastro, compromete a estabilidade. O mar, impiedoso, não perdoa improvisos. O vento castiga, e nós, frágeis, resistimos como podemos. O orgulho se despedaça no convés, junto com os estalos secos da madeira velha. Já não há espaço para vaidades. O que resta é sobreviver.

Continuam a navegar, sem se  preocupar com regras, deixando o vento e as estrelas guiarem nosso destino. A cada onda que quebrava contra o casco, mais se entregavam à liberdade que o mar nos oferecia. Não havia um rumo certo, apenas o desejo de explorar o desconhecido, de estar perdido para, talvez, nos encontrar em algum lugar melhor.

Quando paravam em algum píer, a piêmese da piela era evidente, e tudo isso nos deixava imunes à pieguice da piesimetria. Mas alguém sempre gritava: BLASFÊMIA! E ninguém parecia se importar, quando a sensação é de que já estavam afundando lentamente dentro deles mesmos.


Glossário:
Legorne, palavra derivada do inglês Leghorn, designa a raça de galinha poedeira de ovos brancos, oriunda da região de Livorno, Itália.
alheta: Prolongamento externo da popa do navio.
anacoreta:religioso que vive na solidão.
ilhotas de Langerhans.Ilhotas pancreáticas (ou Ilhotas de Langerhans) são um grupo especial de células do pâncreas que produzem  insulina.
Manaça: homem indolente.

quarta-feira, 30 de abril de 2025

Inspiração pueril




Monólogo de uma gangorra


Gango para sua incoerência, quando a inflamação de um gânglio limita, e o corpo silencia onde a alma ainda grita, mas ainda assim sorrio com a ternura de quem entende o caos. Gangarreão e sua peculiar idiossincrasia, mesmo assim ainda tem a gangarilha, quando que de gângaras para um mundo que se arrasta em lentidão, como se cada passo fosse dado com a resistência de um corpo cansado de lutar contra si mesmo. Toda essa ledice efêmera me incomoda. Quando estou no ápice, sinto poder apalpar Aldebaran, quase pego a maçã da macieira e sinto toda a maciez das folhas que dançam no vento, sem se preocupar com nada. É nesse instante que tudo parece fazer sentido, mesmo que por breves segundos. As maçãs reluzem como se carregassem dentro de si a sabedoria do início. Nunca vou comê-las, não por falta de desejo, mas por saber que certas coisas existem apenas para serem contempladas, e eu quase escuto o estalo das suas cascas se abrindo para revelar o suco da memória. O mundo se curva em pequenas ondas de nostalgia, compreendo que a leveza é, na verdade, o disfarce da dor.
Quando estou na gleba, sinto o ínfimo vil se dissolver no murmúrio das raízes, como se o chão sussurrasse segredos enterrados sob o peso do tempo. A poeira se ergue em espirais suaves, desenhando no ar a memória de passos antigos que já não sei se são meus. Tudo se move em lentidão, mas há uma precisão nisso, uma cadência quase sagrada que escapa à lógica e repousa apenas na intuição. A terra exala lembranças esquecidas, como se cada grão soubesse mais sobre mim do que minha própria memória ousa admitir. Os pés afundam, aceitando o peso que não se vê, e cada passo é como uma conversa com o telúrico, a qual me leva a perguntar aos vermes: O que é ser poeira, senão matéria que se reinventa ao se fundir com a terra? Sinto o petrichor da bátega que caiu sobre mim a noite inteira. Pelo menos vai lavar o vômito em mim, limpar as marcas invisíveis que carrego. A chuva parece não só apagar a sujeira, mas também suavizar a dureza do ser que se acostuma a suportar sem questionar. Cada gota que cai carrega um peso alheio, como se, ao entrar em contato com meu corpo, absorvesse o que me afasta de tudo o que é puro. A terra, agora saturada, me abraça com uma suavidade inesperada, e sinto o calor de suas raízes se infiltrando sob minha pele, fazendo-me lembrar que pertenço a algo maior que meus próprios dilemas. O chão, com suas infinitas camadas de histórias, fala sem palavras, em uma língua ancestral que não precisa de tradução. Eu a entendo, porque sempre soube que, no fundo, as respostas estão todas aqui, sob o peso do silêncio.
Sinto o prurido do gadanho afiado do pássaro que em mim pousou. Às vezes queria voar, sair um pouco de mim, escapar da rotina, do peso dos dias que se repetem. Imagino como seria deixar tudo para trás por um instante, só para ver o mundo de outro lugar, de cima, com mais clareza. Talvez não fosse uma fuga, mas um jeito de entender melhor o que sinto aqui embaixo. Não sei se o pássaro veio me ensinar ou apenas lembrar que ainda tenho esse desejo de movimento dentro de mim. Mas ele está aqui, firme, como se dissesse que voar é mais uma questão de coragem do que de asas.
O dia está calmo hoje, nenhuma criança por perto. Sinto folhas caindo sobre mim. São leves, não conseguem me mover. Apenas se acumulam, uma a uma, formando uma camada fina de silêncio e tempo. O ar está morno, quase parado, como se o mundo estivesse esperando alguma coisa que não chega. Apenas um cachorro veio urinar sobre mim, e o cheiro me invade, desagradável, como se a tranquilidade do momento tivesse sido rompida de maneira inesperada. Esse animal podia, ao menos, escolher outro lugar. Por que justamente eu? Com tanta árvore por aí, acho que o perro ficou obcecado comigo. Agora ele cava ao meu lado como se quisesse me exumar. Cada movimento dele é uma martelada nos meus pensamentos, uma lembrança de que até na quietude algo sempre vai interromper. Eu observo, impotente, o animal fazer sua escavação, como se estivesse determinado a desenterrar algum segredo que nem eu sabia que guardava. O barulho das patas contra o solo me incomoda, uma espécie de insistência sem sentido. Se ao menos ele soubesse o quão desconfortável é ser o alvo de sua curiosidade, talvez procurasse outro lugar para aliviar suas necessidades. A cada escavação, sinto a base embaixo de mim afrouxar, como se estivesse prestes a ceder. Eu já estava firme, mas agora a pressão do solo se desfaz, e a sensação de que estou prestes a cair cresce. Não queria provocar quedas ou acidentes, mas agora a sensação de que estou prestes a sucumbir é inevitável. Não é culpa minha que ele tenha escolhido este lugar, mas, de alguma forma, agora sou eu quem arca com as consequências. Eu só queria que ele parasse, que encontrasse outro lugar para se distrair, que sua insistência não interferisse mais em minha paciência.



Glossário:gango-substantivo masculino[Portugal] O mesmo que mimo, meiguice.
Gangarreão-substantivo masculino.Desordem mais ou menos profunda na saúde de alguém.
gangarilha-substantivo feminino[Teatro] Companhia itinerante, com poucos atores, no teatro espanhol. 
Gângaras-De gângaras, indolentemente; de má vontade.

segunda-feira, 21 de abril de 2025

Inspiração frugal




Imagem:filme A cor da Romã(The Color of Pomegranates)1968
Sergei Parajanov




Manual para um Caos Deliberado


A arte de empilhar é pura organização. Depois, você pode colocar os títulos em ordem alfabética para facilitar na hora da busca por um autor específico. Cuidado com o especilho, você ainda está se recuperando, e esses calhamaços não são leves, principalmente as enciclopédias. Uma especiosidade espectável quando se especula sobre o caos, o espedaçamento e o espeitamento do que se sente. O vento às vezes tenta derrubar tudo, como se testasse sua fé na gravidade e na literatura. As cores também contam histórias. Tente agrupá-las, cores lado a lado criam uma nova narrativa, estilo arco-íris. Sempre funciona. Vai que o cérebro lembra melhor pela cor da capa, mas se o leitor for daltônico, isto será um problema. Nesse caso, experimente sinalizar com símbolos discretos na capa, pequenos traços, pontos ou figuras geométricas.
Estrelas para poesia, quadrados para ciências exatas, triângulos indicando ficção, círculos sugerindo filosofia.
Assim, mesmo que os tons se confundam aos olhos, a lógica permanece acessível. O conteúdo continua mapeado, não pelas aparências, mas pela intenção.Uma linguagem secreta entre o leitor e o acervo,um código silencioso que respeita cada limitação como se fosse estilo. Melhor não deixar a métrica perto de estatísticas demográficas. Ela se assusta fácil. As metáforas dançam, os números marcham, mantenha uma distância elegante. Iletrados virão. Não vai precisar se preocupar com o ilegítimo e o ilenível será subestimado. Seria melhor utilizar o ileísmo até que as margens deixem de ser fronteiras e passem a ser espelhos. O ileísmo protege, não como armadura, mas como disfarce. Ao falar de si na terceira pessoa, desloca-se o centro da dor, distribui-se o peso, dá-se tempo ao entendimento. O afastamento cria frestas por onde o sentido escorre sem ser coagido. É nessa dissociação que algo nasce, algo que não depende do verbo nem da norma, mas do gesto de se colocar diante do mundo com olhos desalinhados. Quadrúpedes virão, guiados pelos quasares, e a aproximação se dará em passos baixos e firmes. Chegarão arrastando séculos de silêncio sob as patas. Serão criaturas que não pedem licença ao vocabulário. Você terá que fazer algo que interrompa o avanço sem violência, algo que desfaça o chamado sem negar a presença.Talvez dispor espelhos voltados para o solo. Ruídos agudos em frequência quase inaudível, nada agressivo, apenas inóspito. Eles entenderão. Não se trata de hostilidade, mas de delimitação. O espaço precisa manter sua arquitetura simbólica, e nem todo visitante se alinha ao pacto da leitura. O silêncio, aqui, tem outra densidade. Melhor evitar que patas cruzem a soleira onde olhos ainda tropeçam em sílabas. Sapientes virão e vão dizer que já sabem tudo. E, claro, virão com suas teorias prontas, fórmulas que juram universais. Dirão que está desorganizado, que falta método, ignorando que o caos aqui é deliberado, milimetricamente caótico, feito para testar a percepção, não para agradar a norma. Vão rir dos símbolos nas capas, achar “poético demais”, “infantil talvez”, sem saber que cada sinal é uma senha, uma chave pequena demais para mãos tão ocupadas com teorias. Falarão com a segurança dos que acreditam ter encerrado o diálogo com o mundo, como se o tempo já lhes tivesse contado todos os segredos e nada mais restasse senão repetir conclusões. Ignorarão os silêncios entre as linhas, os desvios que o olhar faz quando tropeça numa ideia ainda sem nome. Não notarão que o que permanece quieto não está inerte, mas à espera.Porque há formas de saber que não se impõem, se insinuam. E aquilo que realmente transforma não grita, apenas respira. Afirmando que os conceitos são reciclados, que o pensamento ali contido gira em círculos antigos. Não enxergarão as dobras da memória que se alojam em cada parágrafo, nem os desvios sutis que uma frase pode operar dentro de quem lê com presença. Lepismas virão, atraídas pela quietude e pelo sabor antigo das folhas esquecidas. Serão notadas primeiro pelos rastros tênues, pelas bordas gastas, pelos vestígios quase invisíveis entre capítulos. A resposta será silenciosa, meticulosa. Frascos de cravo escondidos entre volumes, pequenos sacos de lavanda costurados à mão, repousando junto aos diários. A brisa será medida, as janelas abertas apenas nas horas certas, jamais sob o sol direto. Alguns textos serão envolvidos em tecido de algodão cru, outros, revezados em posição para que o repouso não seja abrigo.


Glossário:
Especilho
substantivo masculino[Medicina] Tenta cirúrgica.
Tenta
substantivo feminino[Medicina] Espécie de estilete para sondar fendas.

terça-feira, 15 de abril de 2025

Inspiração vítrea


Monólogo de uma ampulheta



Barchan escorrendo em meu âmago, cada grão revela um sussurro do tempo que se esvai em silêncio. Cada instante desvanecido se transforma em um eco que se dispersa pelo infinito, carregando consigo as marcas de momentos que jamais retornarão.
Enquanto as sombras do passado tentam reavivar memórias há muito adormecidas, sinto o peso suave dos instantes esquecidos. Não estou sendo saudosista, mas eles eram mais felizes e não sabiam. Mesmo com a pouca tecnologia, o encanto da simplicidade fazia com que cada encontro e cada gesto tivessem um brilho próprio. Pode me chamar de ludita: encontro refúgio na ternura de uma época em que o toque e o olhar diziam mais do que palavras digitais.
Havia magia na demora dos acasos e na riqueza dos silêncios compartilhados, onde cada riso e cada lágrima formavam a tessitura de uma existência plena. Talvez seja tolice, mas prefiro abraçar a memória dos instantes que se estendiam, longos e intensos, onde a alma se revelava sem artifícios. Tento abafar a barafunda externa. Preciso de silêncio para escutar o que se perdeu entre os excessos.
O tempo ressoa em ritmos esquecidos, sussurra verdades que poucos querem ouvir. Há algo essencial na espera, na contemplação do imperceptível, no intervalo entre o que foi e o que será. Sigo resistindo à vertigem dos dias rápidos, aos sentidos anestesiados, às conexões que não tocam.
Caminho sobre lembranças que se desfazem como espuma ao toque, mas que ainda guardam o peso de tudo o que já foi vivido. Contudo, esta baragnose predominante infiltra-se em meus pensamentos vítreos, refletindo distorções de uma aridez íntima. A rispidez implacável corrói convicções e esculpe labirintos de dúvidas.
Meus olhos translúcidos jamais contemplaram o mar, só conhecem miragens, ecos de águas que nunca tocaram. A torneira pingando na pia marca o compasso de um tempo implacável, cada gota, um lembrete de ciclos intermináveis. Sinto sede, mas não de água, é um anseio que escapa à compreensão, um vazio profundo que nem o fluxo incessante preenche.
O som ritmado ecoa como uma memória persistente, desenhando círculos na superfície imóvel, enquanto a secura invade, convertendo pensamentos em poeira. Mudei desde ontem, hoje pareço o Atacama. O bafo no vidro não é respiração, é a mudança brusca de temperatura. Hoje vai ser um daqueles dias. As pessoas estão cada vez mais preocupadas com coisas fúteis, e as inquietações se multiplicam, sufocadas por ruídos sem substância.
Olhares vazios percorrem telas brilhantes, buscando um sentido que se dissolve antes mesmo de ser compreendido. O que antes era encontro, agora é dispersão. O que antes era troca, agora é consumo. Cada gesto automatizado alimenta um ciclo que não cessa, um redemoinho de urgências que nada significam.
Observo a pressa, a ânsia por algo que nunca chega. Palavras ditas sem serem sentidas. Risos que não encontram eco no peito. Promessas feitas apenas para preencher o silêncio. Agradeço à criança que me quebrou, agora sou uma campânula. Tudo se esvai antes de ser sentido, como se houvesse medo daquilo que permanece.
Mas eu, na minha transparência imperfeita, me mantenho imóvel, escutando as vibrações do que persiste, do que ainda pulsa sob a superfície.

terça-feira, 1 de abril de 2025

Descrição de imagem


 imagem: Filme Amer 2009( Hélene Cattet)



A essência do caos


A saliva é salgada, magma no catagma do tagma. Não espere de mim as mais doces palavras; o óbvio não me atrai, e o trivial me entedia, talvez um sintagma: a essência do caos. Ela sinalizou, em silêncio, que tudo estava bem, com a suavidade do sinalagma entre nossas sombras e vícios.
O buraco negro está prestes a te engolir. Até quando você vai persistir nisso? É muita ousadia de sua parte querer afrontar toda essa singularidade gravitacional. Se você está procurando por distorções, há opções mais viáveis. Em vez de se lançar no abismo do desconhecido, sei que tudo é acirrante, toda essa aciesia de um acismo não vai te trazer paz.
Posso te mostrar meu universo particular, onde as leis da física são apenas sugestões e a matéria se dissolve em pura percepção. Lá, não há necessidade de explicações ou preceitos, apenas a imersão na fluidez da existência. Aqui, onde o tempo e o espaço se entrelaçam, você poderá ver que a linearidade é uma ilusão confortável para mentes que buscam segurança. Onde você vê escuridão, eu enxergo luz em seu estado mais puro, uma luz que não brilha de fora, mas em cada átomo que compõe sua essência.
Aqui, não há espaço para dualidades; o que você chama de vazio é apenas o campo fértil onde novas formas podem nascer. Em meu universo, as distâncias não são medidas em unidades fixas, mas em sentimentos, em pulsações, em momentos de pura conexão. A parestesia sentida não era má circulação, mas algo que transcende as limitações da carne e alcança a alma. Cada sensação, cada vibração, não é mais um simples reflexo do mundo físico, mas uma expressão do que está além, algo profundo e inefável, que não pode ser tocado, apenas sentido.
Agora que o vazio foi preenchido pela imensidão do possível, você começa a perceber que não há separação entre o que é e o que poderia ser. As estruturas rígidas que você conhecia, as certezas que formavam as bases da sua percepção, começam a se desintegrar diante de você, dissolvidas pela maré do entendimento expandido. A matéria, que você acreditava ser sólida, se desfaz em ondas de energia e intenção, onde a forma é apenas um reflexo temporário da verdadeira essência.
A realidade, como você a conhece, se desfaz e se mistura, tomando novas configurações, agora maleáveis, sem uma definição absoluta.

quinta-feira, 6 de março de 2025

Do caos à adaptação:caminhos dilacerados



Resgatar a borboleta do balastro


Abrastol não vai ajudar, talvez bromalina, quando tudo é labrosta. Aguenta o brogue? Não haverá descarrilamento por sua causa. O ambiente é áspero e indiferente, onde até o mais frágil ser pode desaparecer sem deixar vestígios. A bromélia teria sido uma escolha mais apropriada para a desova. Nada é mais deslumbrante à vista. A sensação é de que você já alcançou o ponto mais distante. Lembra quando éramos nômades? E tínhamos maior flexibilidade para nos mover? Agora, a sensação é de que tudo se desfez, e o único remanescente é esse trem fantasma, vagando sem rumo, ecoando em silêncio, como uma lembrança distante do que já fomos. Cada parada, uma despedida não dita; cada trilho, uma memória que se esvai. O trem leva com ele não só o que já fomos, mas as esperanças que deixamos para trás, as almas perdidas no vazio de um caminho que não existe mais, enquanto o horizonte se dissolve no nevoeiro do que poderia ter sido.

Acho que o que você está fazendo é uma forma de autodestruição. Não te repreendo, já tive essa ideia em mais de uma ocasião, mas parece que algo me impede de tomar essa decisão. Talvez seja a lembrança do que éramos ou o medo do que restaria quando o trem parasse de vez. O vazio parece imenso, mas, ao mesmo tempo, o movimento é a única coisa que ainda nos mantém vivos. Somos, de alguma forma, prisioneiros das escolhas que fizemos. Ah, o livre-arbítrio talvez seja o culpado de tudo isso que está acontecendo, essa ilusão de poder escolher, de controlar, quando, na verdade, estamos apenas seguindo um destino traçado por nossas próprias mãos, sem perceber. As opções que um dia pareceram tantas agora se reduzem a um único caminho, estreito e sem luz, onde cada passo parece nos levar mais para longe daquilo que pensávamos ser o nosso lugar.

Dizem que a gente acaba se moldando ao que nos é imposto. Agora que te salvamos do basilisco fumegante, o básico, temos as vicissitudes, o mistral, talvez com uma Guanandi, toda basiofobia controlada. Mas ainda há o calor do siroco, que nos enfraquece aos poucos, como se nos consumisse de dentro para fora, até que não reste mais nada além de uma sombra. E há a neblina, que pode esconder até os piores perigos, aqueles que surgem nas margens de nossos pensamentos, minha basite, sua Beauveria bassiana. Não há beleza sem dor, não há vida sem luta. Somos como ela, buscando o néctar da existência, mas cada toque do vento é um risco, cada escolha pode ser fatal. A borboleta, assim como nós, se adapta aos ventos e às tempestades, mas, no fim, a fragilidade da sua alma é tão evidente quanto a nossa. Vulnerável, sempre à mercê de predadores que a observam com olhos famintos, como as aves que a caçam no ar ou as aranhas que aguardam em suas teias silenciosas.

sexta-feira, 28 de fevereiro de 2025

Topografia do Desconforto

imagem: Filme -O Livro de Cabeceira (Peter Greenaway, 1996)


Monólogo de uma verruga

Sou dessas que estouram. Não sei conter meus impulsos, vontade de ser vulcão, e, quando rompo, é porque já transbordei em silêncio por tempo demais. Pápula na escápula de um crápula, sentem mais asco de mim do que a dor que eu causei. Sou o erro que ninguém admite, a falha que insiste em existir, me espalhando em cada gesto, em cada palavra não dita. Fui nutrida pelo desprezo, e o calor é sufocante, e você ainda insiste em usar roupas pretas. Toda essa sua sudorese está me incomodando. Transbordava um lago de seu umbigo, seu corpo é estranho, pelos que se erguem e se curvam como raízes teimosas. Parece que estou em uma selva, um emaranhado caótico onde cada haste rebelde se inclina e se entrelaça sem direção.
O ar abafado faz tudo parecer mais denso, mais pegajoso. O suor escorre, formando trilhas úmidas que deslizam pela pele quente, carregando consigo o sal e o cansaço do dia. Aqui, no meio desse território selvagem, sou um ponto fixo, epílogo de algum texto que você não conseguiu terminar, como uma palavra solta que resiste a desaparecer, apesar das tentativas de ser apagada. Cada respiração sua reverbera, e eu sou arrastado, incomodado pelo ritmo frenético de suas pressas e impulsos. Seu corpo se move, mas em um padrão que não me escapa, como se cada passo fosse um capítulo novo que se repete incansavelmente, sem jamais alcançar um fim.
Uma fissura na superfície imperturbável de seu ser, resistindo aos toques distraídos, do prurido inconsequente, toda titilação sem titubear a rubefação. Parece que estou em Marte, um solo árido, inflamado, onde cada mínima perturbação acende um desconforto latente. Vermelho, latejante, pulsando em resposta ao menor estímulo, como se a própria atmosfera pesasse sobre mim, comprimindo, testando minha resistência. A fricção entre nós é inevitável. Sua pele me repele, seu toque me afronta, mas, mesmo assim, permaneço.
Poros que se abrem e fecham como pequenas bocas famintas. Confesso que tudo isso está me assustando muito. Seria melhor se fosse uma cratera na Lua, talvez Abulfeda, sua calma inerte, sem a constante tensão do corpo que se move e se agita. E a falta de gravidade... como seria libertador! Eu flutuaria, sem essa pressão incessante, sem o peso do toque, sem a força da fricção me arrastando para o limiar do desconforto. Não haveria mais o calor que me consome, o suor que me prende em cada curva de sua pele.
Eu seria apenas uma nódoa, um vestígio etéreo no vazio, sem essas pressões que se acumulam em cada respiração sua. Gasta todos os dias um quilo de maquiagem para me esconder, como se ninguém tivesse imperfeições, como se eu fosse um erro que não deveria ter acontecido, um detalhe fora de lugar na composição meticulosa da sua aparência. Todo este seu narcisismo me preocupa. Parece que sua obsessão com o reflexo te consome mais do que eu jamais poderia. Sua pele, esse palco onde desfilam suas inseguranças, não é tão imaculada quanto você quer acreditar.
Mas eu estou aqui, apesar dos disfarces, dos filtros, dos espelhos que você evita encarar sob luz forte. Sou ínfima, mas sou uma afronta, uma imperfeição que resiste, um lembrete incômodo de que seu controle tem limites.

sábado, 15 de fevereiro de 2025

Lirismo esdrúxulo

 

Monólogo de um poste


A ptose pós-albaroo da cegonha, foi utilizada a tremonha, imprescindível para a criação de um deserto. A areia, antes contida nos alforjes do vento, verteu-se em sulcos profundos, cobrindo os vestígios do que um dia foi húmus fértil. O sol, cúmplice silente, consolidou a secura com sua língua de fogo, enquanto as sombras encurtavam-se até tornarem-se apenas memória. Vontade de ser pirâmide, toda langonha terá consequências: a gravidez era pré-eclâmpsia, no orto, só virão siriris em busca do calor. Rodopiam errantes, tangenciando o brilho efêmero, desenhando órbitas trêmulas no ar denso. Alguns ficam sem asas e acabam virando cupins.
Espalham-se pelo solo úmido, tateando frestas, buscando fendas onde o destino os acolha. Os que encontram abrigo somem na escuridão, fadados a erguer reinos ocultos sob os pés desatentos. Outros, desprotegidos, sucumbem ao roçar voraz das formigas, ao peso indiferente dos passos, ao tempo que tudo dissolve. O farfalhar mínimo se dissolve na penumbra, enquanto a brisa dispersa corpos exaustos. O ciclo persiste, indiferente às súplicas do instante. Piscava de propósito, em código morse. A transmissão de dados é importante quando todos estão vivendo em uma bolha de incoerências, onde as palavras perdem peso antes de alcançar um destinatário, chamamento para as Morsas. Não sei por que gostava delas, talvez pela quietude que se escondia na escuridão, pela maneira como surgiam e desapareciam sem avisar, ou simplesmente pela aliteração. Toda gambiarra que me envolve tinha algo de efêmero, como se fosse uma tentativa inútil de tecer significado na vastidão do nada. A precariedade das conexões se refletia nas pequenas faíscas que saltavam. O lirismo contemporâneo exigia isso, uma rendição ao invisível, um abandono do corpo à abstração. O genitor não era íntegro, nunca voltou para ver sua prole, e assim a ausência se espalhou como uma névoa, envolvendo tudo em sua indiferença. Não vou deixar mais ninguém se aproximar de mim, muito menos perros que me usam como mictório; serão todos eletrocutados. Protesto contra esta cidade apática, que mantém suas luzes acesas, mas apaga pessoas. Ruas ermas, calçadas trincadas, sombras projetadas sem dono. O asfalto, quente e impassível, engole passos hesitantes, afoga vozes antes que se tornem clamores. Só vou deixar colarem poesias em mim. Servirá de escudo contra a rigidez pétrea do tempo, contra a erosão da indiferença. Cada verso colado à pele será uma armadura de palavras, uma trincheira onde a memória resistirá ao esquecimento. Se a cidade apaga pessoas, então que ao menos os ecos fiquem gravados nas esquinas, nos postes, nos muros descascados.
Mas a tinta desbota, o papel se desfaz sob a chuva ácida das horas, e os olhos que leem seguem em frente, distraídos. Precisamos de algo mais resistente, como tatuagem, que chame a atenção do transeunte apressado, uma cicatriz que não se apaga, que grite em silêncio contra a dissolução. Frases esculpidas na carne do concreto, gravadas a ferro e ausência, talhadas no esquecimento para que a cidade se lembre do que insiste em soterrar.
No reflexo dos vidros embaçados, rostos se desmancham antes de se tornarem lembranças, borrões fugidios que o tempo devora sem remorso. Insisto em deixar marcas onde o apagamento é regra, cicatrizes que latejam sob a superfície endurecida das ruas. Se ninguém lê, que ao menos sintam, como se fosse um choque, um arrepio, um incômodo que os obrigue a parar. Agora vou ter o descanso merecido, mas há sempre um resquício de energia circulando, uma vibração imperceptível sustentando o que resta da memória. O silêncio não é absoluto—pelo contrário, carrega murmúrios invisíveis que se prendem à superfície áspera, ecos de passos esquecidos, frases interrompidas pelo ruído de motores ao longe. Nunca entendi o motivo de tanta pressa. Se tudo se repete, se os caminhos são sempre os mesmos, se os dias se sucedem sem novidade, por que a urgência? As horas se dobram sobre si mesmas, mas ninguém percebe. Correm, como se houvesse um destino inadiável, como se o tempo pudesse ser domado pela velocidade dos passos. Mas eu sei que não há chegada, apenas o desgaste, a erosão lenta dos que seguem sem notar o que deixam para trás. Coleciono os ecos que não encontram abrigo, cada despedida feita em silêncio.


terça-feira, 4 de fevereiro de 2025

Anagramas Marítimos

 
imagem: Rio Potomac, onde ocorreu uma colisão de um helicóptero e um avião no dia 29/01/2025


Agora que seu líder é um fascista fascíola, vai ser difícil o adejo; acostume-se com o redil e regule o fluxo de suas reações, talvez tenha fascipenes e todo fascínio aéreo vai se acabar. Exúvio? O radome não sente nenhum eflúvio, todo aquele perfume de alfazema que costumava acalmar os ânimos e trazer serenidade agora se perde na indiferença tecnológica, e longarinas dificultam sua fluidez, e o trem de pouso flutua de cabeça para baixo, preso no vórtice de uma espiral invertida. O horizonte artificial já não indica estabilidade, pois o giroscópio enlouqueceu, embriagado por turbulências morais. A fuselagem range com a tensão de parafusos gastos, como se protestasse contra a trajetória imposta. O manche que esquanche e se torne um apêndice inútil, uma engrenagem que ninguém obedece. O transponder pisca em uma cadência errática, atraindo os peixes mais curiosos, código cifrado, SOS disfarçado de normalidade, algoritmos repetindo mantras ocos. O painel, como um altar profano, onde a própria matéria hesita entre colapso e resistência, suspensa no limiar de uma rendição sem testemunhas. Onde a fronteira entre dentro e fora se dissolve, e o casco já não protege, apenas atrasa o abraço do abismo. O altímetro maltreito, sem ponteiros, marca uma distância que já não é mais mensurável. A deriva já não é escolha, mas sentença, traçada em rotas que não levam a lugar algum. O horizonte, se ainda existisse, estaria dissolvido em uma distopia onde a noção de altura e profundidade se tornou abstração. Turbinas em agonia contida, lâminas dilacerando, esgarçando sua própria estrutura, agora são túneis para zabucaís famintos, que espreitam o vulto metálico como um cardume hipnotizado pela estranha criatura que invade seu domínio, onde a água se infiltra lenta e inexorável, preenchendo os vazios deixados pelo ar que escapa em bolhas dispersas. Outros virão antes que você perceba, prejerebas no prejudicado ambiente, deslizando na neblina líquida como espectros que se alimentam da decadência, caindo sobre as feridas abertas da máquina, em busca de fragmentos que restaram das suas formas, antes vivas. O fluxo da água se intensifica, um murmúrio crescente que se mistura ao rangido da estrutura, onde o metal já não é mais aliado, mas um corpo que se derrete nas mãos do tempo, devorado por um oceano implacável. As fendas, agora mais profundas, permitem que as sombras se arrastem por dentro, invadindo os interiores, onde os sistemas de navegação piscam, as luzes vacilam em uma última tentativa de manter a ilusão de controle. Mas os prejuízos não são apenas estruturais, são existenciais. A caixa preta foi encontrada entre os destroços, coberta por fuligem e detritos, mas ainda intacta, um testemunho dos últimos momentos, pronta para revelar a verdade sepultada no caos. Isso tudo é fuselagem, isso não te concederá as asas que almejas, nem se sugar uma frota; a flotilha precisa de mais baunilha, a baritimia da barita.

sábado, 25 de janeiro de 2025

Anagramas urbanos



Sombras no Labirinto da Percepção



Cidade adefágica
Os becos são labirintos sem saída
Onde a dor se curva, mas nunca cede
Cada passo dado reverbera no abismo do ser
Como se o corpo carregasse todos os ecos de um mundo em colapso
Uma adega para o desértico
Deixa tudo adélido
Ademais toda essa adesmia não inspira
Nunca quis me expor em demasia
Toda essa batianestesia não instiga
Erguem-se batibandas em torno da percepção
Não vou negar que sempre fui batíbico
Moldado pelas ondas que sempre busquei enfrentar
Imaginei algo bucólico
Bucolabial contra o silêncio
Estou lendo Bukowski
Sem se importar com a pressa
O tempo se arrasta como uma sombra,
Desaparecendo na neblina do indizível
Onde o corpo se torna prisão e a mente um refúgio.

sábado, 18 de janeiro de 2025

Inspiração antropofágica


Vultos de Outrem: ao morcego no falso Abaporu



Não te reconheço mais, parece que o tempo trouxe mais experiência e algumas curvas a mais. Todos os dias, às 11:48 da noite, a sombra do seu reflexo desliza pelas paredes do meu quarto, se revela como uma avantesma, aparecendo disforme sob a cabeceira da cama. A cada noite, essa presença etérea se torna mais familiar, mas, ao mesmo tempo, mais distante. Ela se movimenta com leveza e parece desafiar as leis da gravidade. Talvez o sentido disso tudo seja simplesmente ser um quadro em minha parede. Tudo bem, providencio uma moldura para te enquadrar. Qual opção agrada mais? Um enquadramento clássico, com acabamentos dourados e detalhes ornamentais, para dar um toque de sofisticação? Ou, talvez, um contorno minimalista, de linhas retas em madeira natural, que destacaria sua essência de forma sutil. Se preferir algo mais moderno, um ornato preto de alumínio seria perfeito, trazendo contraste e contemporaneidade. Por outro lado, uma moldura rústica, feita de madeira envelhecida, daria um ar mais acolhedor e nostálgico.
Talvez o incômodo seja só inveja do Uropaba. Ela faz alguma coisa na lavanderia enquanto espera as roupas terminarem de lavar, mas não sei exatamente o que. Pensando em algo, distraída com seus próprios pensamentos, talvez seja melhor não saber. Agora tenho companhia, e o quiróptero parece estar com ciúmes. Deseja ser único. Com suas asas delicadas e olhar penetrante, observa tudo com uma mistura de curiosidade e possessividade. Ele não aceita dividir o espaço que conquistou; sua presença é um lembrete constante de que a solidão pode ser tanto um abrigo quanto uma prisão. Ele é um guardião, sua vigilância constante não permite distrações. O olhar prescrutador atravessa o intrínseco, desvendando segredos que nem mesmo reconheço em mim. É quase como se ele, com sua presença imponente e inquieta, estivesse marcando um território que nunca lhe pertencerá por completo. Não quer compartilhar a sua refeição com ninguém. Quando eu estiver melhor, talassemia aparente, minha vulnerabilidade, que todos temos, a sua e a luz. Se eu ascender, o exorcismo será feito e você desaparecerá em silêncio, dissolvendo-se na penumbra que insiste em permanecer. Talvez o brilho seja suficiente para revelar o que realmente habita entre nós, desfazendo sombras e ilusões.
O fim de sua existência parece inevitável, como se a claridade tivesse o poder de dissolver os mistérios que tanto teme, escondidos sob a superfície, quase imperceptíveis, mas sempre presentes. Ainda assim, hesito. Há algo na sua presença que desafia o desejo de expulsar. Não é apenas sobre afastar a escuridão; é também sobre entender o que ela sussurra nas entrelinhas do silêncio. Talvez haja algo que precise ser ouvido antes de desaparecer. Mas, se o cistugo aprender a ligar o interruptor, será uma vingança. No entanto, a luz o incomoda e o desorienta. Ele ignora a cístula e não está mais polinizando as flores. Deixou de ser frugívoro e agora presta atenção na fístula lacrimal.
Seria pertinente considerar a inclusão de uma versão da pintura Verão, de Giuseppe Arcimboldo? Serviria de escudo, proporcionando defesa. Ou O Filho do Homem, de René Magritte? Ou talvez eu possa usar um capacete de abóbora e um colar de melancias. Não quero ser confundido com Carmen Miranda. Está calor, não quero usar a guante. E se o morcego for apenas uma criação da minha mente, como dizem? Como explicam o guano encontrado em meu travesseiro? Ou talvez eu seja o morcego, algo com que eu deva me preocupar? Talvez ser um morcego signifique liberdade, ou até um chamado para algo maior que ainda não compreendi: uma parte de mim que desperta à noite, que enxerga no escuro e se alimenta de sombras. O que importa é que estabeleceu-se um vínculo silencioso com a sombra. Há um peso invisível que nos molda, que insiste em permanecer, mesmo quando tentamos esquecê-lo ou ignorá-lo.