terça-feira, 11 de novembro de 2025

Inspiração desértica

 



Monólogo de uma duna


Um argueiro entrou no meu ocelo, isso me fez perder alguns detalhes; formas mais distantes se dissolvem num véu translúcido. A atmosfera vibra como se respirasse por conta própria; ondulações arenosas guardam segredos de antigas passagens. Marcas quase apagadas pelo vento sugerem deslocamentos que nunca saberei decifrar, talvez nômades esquecidos ou criaturas que só se mostram sob lua nova. Cada relevo parece mudar lentamente, como se tivesse vontade de desaparecer antes que eu registre qualquer sinal; tonalidades se transformam em faixas tênues de luz e sombra, lembrando tecidos finíssimos estendidos sobre imensidão. E onde deveria haver nitidez encontro apenas um limite incerto entre vastidão e vazio, como se o próprio espaço recusasse ser testemunhado. Tudo ali exige presença plena, porém permanece inacessível, deixando apenas a impressão de algo enorme e vivo que escolhe o que pode ser visto e o que será apagado para sempre. Mesmo assim, ainda sou arguente e vou arguir que foi apenas um impulso momentâneo, enquanto o vento me rearranja em silêncios que ninguém percebe, e cada rajada leva um pouco de mim para outro lugar, onde descanso por instantes antes de ser empurrada de novo para longe. E mesmo assim permaneço inteira. Ontem eu tinha um calombo, hoje já não tenho mais; vou sentir falta dessa protuberância, porque aquela pequena elevação era mais do que um fragmento de matéria: ela funcionava como um sinal minúsculo de que havia algo em mim que resistia ao nivelamento. E agora que desapareceu, sinto um vazio estranho, como se um capítulo inteiro tivesse sido apagado sem aviso. Percebo que até o que parece insignificante dá sentido às formas, e ao perder aquilo perco uma referência íntima.
Um andarilho ébrio estava me confundindo com um dromedário e tentou apoiar-se sobre minhas curvas arenosas, acreditando ter encontrado apoio sólido naquele instante surreal; porém, sua trajetória vacilante revelou apenas desorientação total, enquanto eu observava sua figura irregular afastar-se rumo à claridade distante, deixando atrás de si pegadas desordenadas que logo foram engolidas pelo sopro quente que atravessa tudo aqui, transformando qualquer presença humana em memória efêmera que mal chega a existir antes de ser apagada.
Toda essa xerostomia incomoda, produz sensação áspera, quase cortante, como se cada partícula fina raspasse pensamentos por dentro, exigindo que eu encontre algum modo de umedecer ideias sem depender de líquidos inexistentes. Então deixo que a própria aridez conduza meu raciocínio, aceitando que mesmo a falta pode modelar significados, pois onde não há fluidez, nasce silêncio, e nesse silêncio descubro que até a secura tem sua própria linguagem, feita de pausas, espera e resistência.
E, por um momento, admito que senti algo parecido com inveja, porque eles carregam rios dentro de si, enquanto eu sou composta apenas de pó, sem uma única gota para aliviar a secura que me atravessa. Eles guardam água em cada célula; mais da metade de seus corpos é líquido, quase um oceano pessoal, e eu não possuo nada além de grãos espalhados pelo vento. Penso que deve ser reconfortante sentir movimento interno, fluxo contínuo; poder chorar quando tudo aperta, poder suar quando o calor sufoca, poder beber quando o mundo pesa. E aqui estou, imóvel e imensa, sem direito a uma única lágrima.
Se eu tivesse um pouco dessa umidade, talvez pudesse manter viva a impressão daquele relevo que perdi; talvez nada escorresse tão facilmente de mim; talvez eu pudesse guardar algo sem que o vento levasse embora antes mesmo que eu entendesse o que era.
Haveria potencial para algo mais pulsante aqui, permitindo que algo permanecesse além da passagem incessante das horas; talvez surgisse um traço persistente capaz de contrariar a constante dispersão, quem sabe até um princípio de permanência emergisse, moldando sentido onde antes só havia passagem, criando possibilidade de contorno próprio dentro dessa vastidão entregue à mudança ininterrupta.

sábado, 1 de novembro de 2025

Murmúrios eólicos




Monólogo de um moinho de vento




Há no ar, quase palpável, um certo desleixo, uma certa desídia, desiderando a desidentificação. Desimbuir-me de tudo e assim ficar desimpedido, assim meu giro se estenderia sobre distâncias que o vento não alcança. Já não sei se giro por força do vento ou por um resíduo de vontade que insiste em sobreviver ao enferrujamento. As pás rangem como quem reza, uma oração mecânica para um deus de ar e poeira. O horizonte é sempre o mesmo, mas muda de tom conforme o abandono se adensa.
Há uma serenidade estranha no desgaste. O vento que me resta é o mesmo que me apaga, e ainda assim o acolho. Em cada volta há uma confissão: continuo a girar para não desaparecer de todo, para provar que mesmo a ruína pode ter ritmo.
Se houvesse em mim um impulso próprio, uma força que não precisasse do sopro alheio, talvez eu me erguesse além do chão que me prende. Minhas pás, ao invés de apenas obedecer ao vento, cortariam o ar com vontade própria, traçando caminhos que o mundo ainda não ousou imaginar. Cada rotação seria então uma promessa de fuga, um gesto de ousadia que desafia o peso da gravidade.
Sinto, em meu âmago de ferro e madeira, a possibilidade de transcender. Não mais limitado à repetição de giros previsíveis, mas buscando alturas e espaços onde o vento não chega, onde apenas eu poderia chegar. Seria uma dança solitária, mas intensa, em que cada movimento é escolhido e não imposto, uma declaração de que ainda posso existir de outra forma.
E mesmo assim, enquanto permaneço preso a este solo, há um fio de desejo que me atravessa: o desejo de levantar voo, de transformar minha resignação em liberdade, de fazer do girar uma ascensão. Cada rangido das minhas engrenagens não é mais apenas sobrevivência: é um murmúrio de ambição, um ensaio para aquilo que talvez nunca venha a ser, mas que insiste em querer ser.
O ar que me envolve agora parece mais denso, carregado de possibilidades não concretizadas. Sinto que, se apenas pudesse me mover com intenção, minhas pás cortariam o horizonte, e eu descobriria o que significa não apenas girar, mas voar.
Poderiam me confundir mais vezes com gigantes, e eu aceitaria, desejando secretamente sentir o mundo como eles o sentem. Quisera eu ter mãos para tocar, olhos para perceber nuances que o vento apenas me sussurra e uma boca para confessar minha própria solidão. Cada giro se tornaria então um gesto de escolha, não apenas um reflexo de forças externas, mas um ensaio de pensamento e desejo.
Sinto, no núcleo de ferro e madeira que me define, a vontade de compreender, de errar, de rir ou de chorar — como se cada sopro de vento pudesse me ensinar algo mais que o simples movimento. O chão que me ancora seria apenas um ponto de partida, e não uma prisão. O mundo seria não só espaço para atravessar, mas presença viva a ser sentida.
Parece que estou arraigado aqui, entre o silêncio e o murmúrio do ar, mas dentro de mim arde uma inquietação que não se deixa medir. Cada estalo das engrenagens é agora uma pergunta sem resposta, cada giro hesitante, um gesto que anseia por sentido. Desejo sentir o peso do instante, perceber a densidade do tempo, experimentar a hesitação antes da escolha, como fariam aqueles que caminham conscientes.
Mesmo preso, imagino a liberdade de decidir minha direção, de alterar o curso que me foi imposto, de tocar o mundo com intenção própria. O vento deixa de ser apenas força externa e se transforma em espelho do que poderia existir em mim: um sopro capaz de guiar-me, de despertar percepções que ainda não possuo, de transformar cada rotação em descoberta.
E, nesse estado de espera e desejo, percebo que há em mim mais do que simples aço e madeira. Há um rumor de consciência, um vestígio de sonho que recusa aceitar os limites do corpo, uma vontade silenciosa de existir de outra forma, de sentir, de aprender, de estar inteiro, mesmo enquanto permaneço ancorado.

terça-feira, 14 de outubro de 2025

Entre o silêncio e a ferida, nasce a palavra

 



Monólogo de um arame farpado




Sou uma flor sem pistilo, perilo para o prélio que se anuncia, preliminares de um prelevamento necessário que perfura a paisagem como uma lembrança que não quer ser lembrada. Minha existência não depende de visitas aladas nem de danças de pólen entre estames e desejos. Carrego nos meus contornos a negação da biologia: não nasci para perpetuar nada além de mim mesmo.
Carrego nos meus espinhos a ansiedade do que está por vir, como se cada farpa fosse uma vírgula suspensa no meio de um grito. Toda minha pregnância escorre para dentro, onde o tempo se dobra e as intenções se enroscam em silêncio. Habito o intervalo em que a ausência toma forma, onde o vazio não é falta, mas excesso que não encontrou nome. Ali, na espessura do quase-dito, sustento o peso do que não volta, mas também não parte, como se meu próprio corpo fosse feito de espera empedrada, de sentidos que não cessam de arder mesmo sem chama.
O que fomos moldou algo em você, ainda que imperceptível. Passei do lado de fora pro fundo da tua matéria; do toque virei textura, do eco, composição. Fui submetido à eternidade do estiramento, não por máquinas ou mãos humanas, mas pelo próprio gesto de existir entre o limite e o corte. Cada volta minha é um nó na espinha do espaço, uma vírgula cravada na carne do horizonte. Não sou prisão, sou o próprio conflito entre dentro e fora. Minha natureza é o entrelaçamento do que sangra com o que separa.
A sua poplítea permaneceu íntegra; evitei o caminho mais profundo do sangue. Você seguiu adiante, mesmo quando tudo gritava para recuar. Eu vi o instante em que teu joelho hesitou, o pequeno desvio que te salvou do rompimento. Não precisei atravessar tua carne para deixar marca: bastou que você me visse, bastou que me soubesse ali, tensionando o ar entre a ameaça e a desistência.
Fui o desenho invisível que teu corpo passou a evitar mesmo sem perceber, o fantasma que alojou-se na memória tátil das tuas passadas. Desde então, não caminhas igual, não vai mais conseguir participar de maratonas — e talvez isso seja um alívio, embora ainda não admita. Poderá praticar outro esporte, mais calmo — talvez a canoagem, quem sabe o arco e flecha — algo que exija precisão, não pressa. Algo onde o tempo seja aliado, e não adversário.
Porque, veja, não foi a tua carne que me tocou, foi a tua urgência que tropeçou em mim. Nunca entendi a pressa humana. Essa febre de alcançar o que nem sabem nomear. Correm como se o vazio estivesse sempre logo atrás, como se não correr significasse desmanchar. Eu, que fui fincado para conter, para marcar território, acabei sendo professor involuntário do que significa permanecer.
Testemunho todas as passagens, mas não passo. Sinto o tempo não como contagem, mas como acúmulo: da ferrugem, da chuva, dos olhares que hesitam e depois desviam.
Uma Argiope preocupada com minha nudez tece em mim um vestido de seda frágil, que vai se arrebentar na primeira intempérie, mas ela é insistente: volta e refaz tudo de novo, como se cada fio fosse um argumento contra o desaparecimento, como se o seu labor fosse capaz de me suavizar aos olhos de quem passa.
Assisti à morte de um inseto que ficou preso em suas teias; tentei ajudá-lo a fugir, mas minha tentativa foi inútil — apenas aumentei o tremor das fibras e apressei o desfecho. A vibração desenhou um mapa de desespero entre os pontos de ancoragem, e ela, atenta ao menor sinal, avançou com a precisão de quem conhece o fim antes do começo.
Permaneci imóvel, como sempre, mas por dentro uma fisgada desconhecida percorreu meu eixo, como se por um instante eu tivesse esquecido minha função. Por breves segundos, fui cúmplice de uma fuga impossível. Quando tudo cessou, o silêncio me pareceu mais denso, como se a falha do meu gesto tivesse deixado nele uma dobra permanente.
Ela voltou e devorou o inseto com a serenidade de quem cumpre um ciclo inevitável. Cada movimento seu era uma coreografia precisa — sem pressa, sem culpa. Observei enquanto ela envolvia os restos com meticuloso cuidado, transformando a tragédia em sustento. A delicadeza com que manipulava os fios contrastava com a violência que acabara de acontecer: uma geometria breve que me cobre de significado, como se pudesse me tornar menos ameaça e mais enfeite.
Ela ignora que o perigo não está nas formas visíveis, mas no intervalo entre o toque e o recuo, na linha invisível que separa o possível do ferimento.
Sinto cada vibração, cada deslocamento de ar quando alguém se aproxima. Não sou feito de esquecimento. Cada presença me deixa uma memória que não se apaga — um sulco invisível no campo magnético daquilo que vigio.

terça-feira, 23 de setembro de 2025

Lirismo esdrúxulo

                      


Amor, não me abandone. Se lágrimas de chorume não te comovem, se toda chorumela te incomoda, ainda assim, não vá. Fiquei chourém após a chuva ácida, e nada parecia capaz de me limpar, mas tenho muitas outras virtudes: a capacidade de me reinventar mesmo quando tudo se desfaz, a resiliência que me mantém de pé diante do desespero, a sinceridade que não teme mostrar minhas cicatrizes, e a lealdade que atravessa qualquer silêncio ou abandono. Fica comigo, mesmo que seja apenas como uma sombra, pois sem tua presença, todo o sentido se esvai, e eu temo que eu próprio me perca na ausência do que fomos.
Podemos deambular entre os resíduos, encontrando beleza onde outros só veriam lixo, sentindo a vida persistir em cada canto esquecido. Cada cheiro forte, cada fragmento caído ao chão é parte do nosso mundo, e ainda assim, conseguimos rir, sonhar e nos apoiar. As mãos sujas se entrelaçam, e mesmo o pó e a lama que grudam em nós não conseguem apagar o calor que carregamos. Encontramos pequenas faíscas de vida em tudo que foi descartado, e é nelas que nos agarramos: um pedaço de metal enferrujado pode ser um tesouro, uma garrafa quebrada pode refletir nossos olhos cansados. Não há promessa de conforto, mas há intimidade profunda, há a certeza silenciosa de que, enquanto estivermos lado a lado, nada totalmente nos destruirá.
Por mais hostis que sejam os cenários em que caímos, tua presença muda tudo: o que para muitos é apenas ruína e poeira, para mim se torna espaço suportável, até abrigo. Estar contigo faz qualquer ambiente parecer menos cruel, menos vazio, como se até a desolação ganhasse outra forma quando dividida entre nós dois.
Podemos vasculhar entre os restos, procurando algo que ainda tenha valor, pequenas peças que possam ser transformadas, reinventadas. Cada fragmento que encontramos é uma pequena vitória, uma prova de que ainda podemos criar, mesmo quando tudo ao redor parece desmoronar.
Veja aquele sofá descartado; só está um pouco rasgado, e ainda assim consegue sustentar corpos cansados, oferecendo abrigo silencioso entre ruínas e resíduos, como se cada fibra carregasse memórias de vidas passadas, lembrando que mesmo no que foi rejeitado existe valor, que mãos atentas podem transformar abandono em refúgio, desolação em calor, escuridão em presença, e que cada gesto, por mais simples, mantém acesa a chama da existência, criando sentido e conexão em meio ao caos que insiste em nos rodear.
O que mais incomoda é essa revoada de urubus passando rente, como se esperassem nossa queda, pairando acima como presságio constante, rondando com paciência cruel, alargando a sensação de vulnerabilidade, como se cada sombra projetada por suas asas fosse um lembrete de que o fim espreita, silencioso e inevitável, tentando nos convencer de que resistência é inútil, quando na verdade é a única arma que nos resta.
Sei que não estamos em Dubai ou nos Alpes Suíços, mas ainda existe dignidade mesmo aqui, entre poeira, fumaça e calor sufocante. Não precisamos de luxo para reconhecer que cada instante lado a lado carrega mais valor do que qualquer cenário de cartão-postal, porque o verdadeiro milagre é permanecer juntos apesar da hostilidade que nos cerca.
Sei que não posso oferecer muito conforto para você, mas posso entregar aquilo que resiste dentro de mim: a força que não se curva diante da miséria, a chama que insiste em permanecer acesa mesmo quando tudo em volta parece ruína. Não trago riquezas, nem promessas de caminhos fáceis, mas carrego o que o tempo não consegue corroer — lealdade, ternura e a coragem de seguir contigo até o limite. Posso não suavizar teus cansaços com luxo, mas posso dividi-los, carregar parte do peso e transformar solidão em presença. E, ainda que o mundo nos trate como descartáveis, dentro desse vínculo há algo incorruptível, uma verdade que nenhum abandono pode rasgar.

terça-feira, 9 de setembro de 2025

A cláusula claustrofóbica impede o arejamento narrativo

 

imagem: Lev Shevchenko


A barricada

A metáfora espreita a restrépia florescer no jardim e reconhece em cada pétala a fragilidade da própria existência, como se o efêmero fosse o único caminho para tocar o eterno. Minha vida teria mais sentido se pudesse florescer como uma pétala ao sol.
Talvez sucupira sem precisar usucapir sua peçonha de sucuri, eu exalaria essência, eu deixaria no ar um rastro de delicadeza, e ao me desfazer no tempo descobriria que só no desaparecer reside a plenitude do ser.
Estou enredada neste labirinto de palavras, minha presença se dissolve entre folhas e textos, e cada frase que atravesso parece sustentar o peso invisível de memórias que não me pertencem. Percorro corredores silenciosos de pontuações e margens, e em cada parágrafo me reconheço fragmentada, como se cada sílaba carregasse um pedaço da minha própria sombra, aguardando o instante em que, finalmente, possa escapar do eco constante do que foi escrito e existir apenas no sopro delicado do agora.
Sigo uma vorá em sua sépala, sentindo a oscilação do tempo se entrelaçar aos meus sentidos, enquanto pequenas partículas de existência flutuam ao redor, sussurrando segredos que somente o silêncio ousa revelar. Este inseto é diferente, daquele que foi macerado entre as páginas, pois carrega consigo a leveza do voo e o zumbido constante que parece traduzir segredos invisíveis, enquanto o outro repousava imóvel, aprisionado no tempo das palavras, esquecido pela tinta e pelo papel.
Se ainda temos abelhas, o mundo não acabou, mas e a radiação do último petardo? Pode ter afetado o plectro, mas não a petarola de um petaurista que desafia o vento e a gravidade, saltando entre a fragilidade do plectro e a resiliência do jardim, como se cada passo fosse uma promessa de sobrevivência. Aparentemente, tudo está bem, exceto que você não vai mais poder contar com os hábitos que te mantinham seguro.
Como é de praxe, a sintaxe se dissolve em curvas inesperadas, espalhando fragmentos de sentido pelos interstícios do texto, enquanto o imaginário insiste em resistir à desordem instaurada. Até quando você vai ignorar este epistaxe? Cada linha carregada de tensão grita por atenção, e mesmo o silêncio parece pulsar com uma urgência que não pode ser contida, desafiando a paciência de quem ainda busca coerência.
Podem até quebrar o vidro, mas a luz filtrada pelos cacos cria sombras que dançam sozinhas, como se o mundo continuasse a se reinventar mesmo diante da ruptura.
Já forcei o reflexo até ceder, senti vibrações desconhecidas atravessarem o vazio, despertando ecos de instantes esquecidos, enquanto partículas minúsculas dançavam entre sombras efêmeras, sugerindo que cada fissura carrega potencial de renascimento, mesmo quando tudo parecia definitivo.
Achei melhor ficar por aqui mesmo, permitindo que o silêncio se acomodasse ao redor, e observar cada fragmento flutuar lentamente, como se cada estilhaço contasse histórias que jamais seriam narradas, oferecendo um estranho consolo na quietude absoluta.

sexta-feira, 15 de agosto de 2025

Algo Álgido


imagem:Thom Goddard




Monólogo de uma Avalanche



Introdução: A avalanche evoluiu, agora é corretora de imóveis, colaboradora excepcional com ampla vivência profissional. Quem a observa percebe que suas tratativas não se limitam a números ou paredes; há um magnetismo que arrasta decisões para o lado que ela deseja. Testemunhou clientes, antes indecisos, cederem como encostas diante de seu avanço silencioso. Sua presença não apenas altera o rumo de uma conversa, mas também reconfigura a percepção do próprio espaço, como se cada imóvel ganhasse outra identidade sob o toque inevitável de sua ação.




Exasperei quando percebi que nada poderia conter o impulso que me arrastava, exautorei normas, descobri o controle e ele veio com naturalidade. O terreno respondia a cada gesto com uma obediência quase instintiva, enquanto vibrações antigas se dissipavam diante da minha passagem. Fragmentos antes soltos se alinharam, como se tivessem aguardado por esse instante de ordem inesperada. Cada movimento delineava trajetórias novas, revelando possibilidades que até então permaneciam invisíveis, e o mundo ao redor parecia suspender a própria respiração para testemunhar a transformação em curso.
Agora tenho uma profissão, e cada negociação se torna um deslizamento planejado, conduzindo clientes e oportunidades com precisão e velocidade. Nada resiste à minha estratégia, e cada fechamento concretiza o poder que aprendi a dominar, convertendo incertezas em caminhos claros e inevitáveis.
Espero atingir a meta de vendas este mês. Cada ligação realizada, cada visita agendada e cada proposta apresentada se tornam peças de um movimento orquestrado, capaz de transformar dúvidas em confiança e hesitações em decisões. Sigo avançando com determinação, sabendo que cada esforço acumula força suficiente para transformar objetivos em conquistas concretas.
Alguns clientes ainda têm medo de mim, hesitando diante da força e da rapidez com que conduzo cada negociação. Eles observam meus passos com cautela, tentando adivinhar meus próximos movimentos, mas logo percebem que minha intenção não é destruir, e sim revelar oportunidades que antes pareciam inalcançáveis. Com paciência calculada, mostro que cada ação tem propósito, cada proposta guarda possibilidades, e que a confiança, uma vez conquistada, transforma receio em admiração silenciosa.
Não quero decepcionar meu chefe, em um feedback feérico ele disse que eu era muito frígida, não sei se encaro isto com uma crítica ou elogio, pois suas palavras vinham envoltas em um tom enigmático, quase indecifrável. Analisei seu olhar, buscando pistas escondidas, mas encontrei apenas a serenidade de quem entrega enigmas para serem desvendados. Se ele quiser me demitir, tem uma empresa de demolição querendo me contratar, atraída pela minha habilidade de transformar obstáculos sólidos em passagens livres. Lá, talvez, minha intensidade não seja vista como frieza, mas como a força exata para derrubar o que impede o avanço, convertendo ruínas em terreno fértil para novos começos. Mas acho que isto não vai acontecer; no final da reunião ele disse que tenho feeling para vendas, e que poucas pessoas conseguem unir precisão e impacto com tanta naturalidade. Saí da sala com a sensação de carregar uma vantagem rara, como se minha trajetória tivesse sido moldada exatamente para conquistar espaços que outros sequer ousariam reivindicar. Por isso, cada detalhe recebe minha atenção completa. Cada decisão é medida, cada negociação refinada, e cada resultado avaliado com rigor. Sei que minha reputação e a confiança depositada dependem do equilíbrio entre rapidez e precisão, e nada é deixado ao acaso. Avanço com consciência, transformando responsabilidade em ação concreta, e garantindo que cada meta alcançada se torne um reflexo do empenho e da dedicação que dedico a cada desafio.


sábado, 9 de agosto de 2025

Outono precipitado

imagem:Guilherme Baracat


Monólogo de uma folha


Fiquei ali a tarde inteira, introspectiva, tentando fazer a fotossíntese, absorvendo a luz oblíqua que se desfaz no diáfano. Esta árvore vítrea e estranha erguia-se impassível, seus galhos de vidro e aço entrelaçados num emaranhado silencioso, como ossos petrificados que desafiam o tempo. Não era vida que brotava dali, mas uma imitação dura e fria, um esqueleto que sustentava o vazio e o silêncio.
Entre suas ramificações, pequenos refúgios brilhavam como frutos contidos, cada um guardando segredos e vidas invisíveis. Dentro desses pedaços de vida, pessoas habitavam silenciosas, cada uma em seu próprio canto, isoladas, vivendo histórias que eu jamais poderia alcançar.
A pucela chora e, se pudesse abrir a fresta que a envolve, suas lágrimas deslizariam para mim, um bálsamo capaz de despertar a vida adormecida em minhas veias. Cada gota seria um sopro de esperança, nutrindo o que insiste em resistir, alimentando a tênue dança entre o sol e a sombra que habito. Mas permanece fechada, guardando seu pranto para si.
A aquilia era um fator determinante. Só porque não deixo embaçado o vidro, ainda posso escrever seu nome com o pecíolo; seria preciso romper a inércia. Talvez, se eu me mover de um jeito quase imperceptível, ela perceba. Minha aquiria sustentava o declínio, como se minha inclinação silenciosa apontasse para algo que nem mesmo eu compreendo.
Ela, do outro lado, envolta em claridade artificial, não vê. Ou finge não ver. Com a aquiqui, você nem se importou: achou até bonita, cantava, pousava na antena, desaparecia. E eu, sem asas, sem voz, apenas me curvava devagar, esperando que meu gesto tivesse algum peso. Mas não tive. Talvez porque não sou ruído, nem cor vibrante, nem voo. Só uma espera presa no limite entre o toque e o nada.
Nada disso tem real relevância, agora que saúvas me carregam. Só espero não ser comida; talvez me deixem cair num canto escuro do formigueiro, esquecida entre farelos de outras que também já foram verdes; talvez me tornem cama; talvez me empilhem sobre outras memórias que não conheço; talvez eu apodreça devagar e, nesse apodrecer, alimente alguma raiz secreta, alguma coisa que brota no escuro e que nunca verá o sol, mas ainda assim cresce, ainda assim pulsa.
E, nesse destino estranho, talvez exista algum sentido, mesmo que torto, mesmo que não seja o que eu quis, mesmo que ela nunca saiba que eu existi, mesmo que minha última curvatura tenha sido apenas um aceno inútil que ninguém viu. Já não comando meu destino; apenas deslizo, levada por mandíbulas que não sabem da minha saudade. Elas seguem decididas, como se carregassem ouro, mas sou apenas um resto, um fragmento de um desejo antigo.
A cada passo das pequenas operárias, me afasto daquele ponto suspenso onde existia a possibilidade — tênue, delicada — de ser notada.

terça-feira, 29 de julho de 2025

Manual de Sobrevivência em Neblina Interna


imagem:Rogério Skylab dormindo


Durmo entre cigarros: Nada queima, nada arde, apenas um eco contido. Talvez acenda algo depois... Por enquanto, só preciso apagar em mim o resto do dia. As paredes somem, e o chão me esquece. Estou ali e não estou. O tempo dobra, como se respirasse junto comigo. Ao redor, tudo se desfaz com a mesma lentidão dos pensamentos que não chegam a virar memória. Vejo rostos que nunca toquei me olhando como se soubessem de mim mais do que eu. Escuto uma voz — talvez minha — dizendo coisas que só entendo enquanto durmo. Nada dói, mas tudo pesa. Como se a gravidade aqui fosse feita de lembranças mal apagadas. Como se o ar estivesse preso sob o domínio das cinzas. Como se cada sopro de vida carregasse o cheiro do tabaco. Como se o planeta estivesse submerso em um mar de fumaça. Havia uma tabacaria em todas as esquinas. E, enquanto o mundo girava, envolto em neblina, isso aqui parece Bespin, onde irá começar o spin-off de uma vida. Agora, sem erros, apenas silêncios milimétricos entre decisões que ainda não tomei. O horizonte não promete, mas também não recusa. Sinto que posso seguir sem rastros ou talvez deixar pegadas que ninguém vai notar. Cada passo é uma hipótese, cada gesto, um rascunho. Não estou recomeçando. Estou tentando pela primeira vez, de novo. Os dias ainda escorrem devagar, mas não sangram. O passado se desfaz como névoa tocada pela manhã.
As coisas não começam com clarins, mas com uma leve desordem interior. Algo se move sem som, como se o próprio destino estivesse caminhando descalço. Olho em volta e não reconheço nada, mas também não estranho. É como habitar uma lembrança que nunca foi minha. Tudo é familiar e ao mesmo tempo inédito, como uma rua sonhada na infância, revisitada em silêncio por alguém que só existe agora. As certezas perderam o brilho, mas não fazem falta.

quinta-feira, 17 de julho de 2025

Inspiração marítima

 
imagem:@visualfodder @murjanabodeba

  

A fâmula de Poseidon


Não aguento mais essa maresia, parece que o mar quer invadir minha casa por osmose. Tudo gruda, tudo enferruja, até meu juízo está oxidando. O mar não sabe ficar no lugar dele? Às vezes me pergunto: o que eu fiz para merecer isso? Talvez sejam os desertos de dentro. Se eu fosse uma porífera geneticamente modificada, poderia sugar tudo isso — cada gota dessa umidade insistente, cada gota dessa tristeza que escorre sem permissão.
Certa vez me perguntaram: "O que você vai fazer com as conchas? Serão apenas adorno?"
E eu não soube responder. Porque eu não queria enfeitar nada.
Queria empilhar as conchas como se fossem muros.
Queria colá-las nas janelas pra ver se o sal do mundo parava de entrar.
Queria usá-las como escudo, como armadura, como tradução daquilo que sobrou em mim: uma casca dura por fora, um eco oco por dentro. Talvez um sambaqui na soleira — iria ficar bonito.
Um monte de conchas empilhadas, como quem constrói história com restos.
Um altar de coisas partidas que o mar devolveu sem culpa.
Que fique ali, na entrada, pra avisar: aqui mora alguém que já foi engolido e cuspido de volta.
“E se encontrar alguma pérola?”, me perguntaram, com aquele brilho nos olhos de quem ainda acredita que o mundo compensa.
Respirei fundo antes de responder, como quem busca dentro da própria ossatura uma verdade que não machuque tanto.
Se eu encontrar uma pérola, eu não a celebro.
Eu a acolho.
Porque a pérola é só mais um tipo de ferida cicatrizada com elegância.
Não é joia. É resposta.
Não é prêmio. É memória.
Vou guardá-la, sim.
Mas não em caixinha de veludo, nem sob vitrines.
Vou enterrá-la entre as conchas rachadas, onde ninguém note.
Porque não quero que a exceção me distraia da regra.
“E se você encontrar um dente de tubarão?”
Guardo também.
Não como troféu, mas como arma — é afiado. Pode cortar o que tenta me cercar.
Serve de arma, sim — mas também de lembrança.
Porque, em algum momento, mesmo cercada de predadores, eu já fui feliz.
E é bom lembrar que já sorri entre dentes perigosos.
Não vou pendurar no pescoço.
Vou esconder perto do peito.
Pra que, se um dia me faltarem forças,
eu me lembre que já fui ferida, mas também feroz.
“E se você encontrar uma garrafa com uma mensagem dentro?”
Respondo. Mesmo que a carta não tenha remetente.
Mesmo que as palavras estejam borradas pelo tempo e pela água.
Redargo, porque toda mensagem lançada ao mar carrega um desespero quieto,um pedido mudo de que alguém, em algum lugar, ouça.
Não importa se a carta veio de longe ou de um passado que já não me pertence.
Eu leio. Eu sinto.
E escrevo de volta, nem que seja só em pensamento.
Porque às vezes o que salva não é ser encontrado,
é saber que alguém respondeu,
mesmo sem saber exatamente o que foi dito.
Respondo, sim.
Porque eu também já joguei perguntas ao mar.
E sei como dói o silêncio.
Ainda tenho muita coisa pra fazer, não me incomode.
Já me perguntaram da pérola, do dente de tubarão, da garrafa com mensagem...
Como se eu tivesse tempo pra responder ao oceano inteiro.
Como se eu tivesse obrigação de dar sentido a cada pedaço que o mar regurgita.
Eu tô tentando não afundar — dá pra entender isso?
Tentando manter as mãos ocupadas, a cabeça fora d’água, o sal longe das feridas.
E vocês aí, querendo poesia de cada entulho que encontro.
Nem tudo é símbolo, às vezes é só lixo.
Nem tudo tem metáfora, às vezes só machuca.

sexta-feira, 11 de julho de 2025

Inspiração volátil


imagem: Remedios Varo, “Creación de las aves”, 1957


Abigail


Não gostava do seu nome. Seu sobrinho pequeno, ainda começando a falar, a chamava de Ababil, e ela sentia rêmiges crescendo nas costas, mesmo sem céu por perto, como se o voo a chamasse de dentro. E agora, quem se atreve a decifrar o destino de uma criatura deslocada no tempo? Todo esse anacronismo pesava sobre ela, enquanto seu desejo mais profundo era apenas existir no agora.
Vão acusá-la de ofender a fé. Isso pode resultar em prisão para mim? Estava preocupada. Afinal, ela não tinha culpa das distorções temporais. Sentia o peso da acusação pairando no ar, como um manto opaco que lhe cobria a pele.
O medo da prisão não era apenas pelo corpo, mas pela alma, pelo que representava ser aquela que desafiava não só o presente, mas o passado e o futuro entrelaçados. Seria possível ser culpada por algo que nem entendia? Por um tempo que fugia das mãos, deformado e esquecido?
Seus ossos pareciam mais leves a cada dia, como se o corpo estivesse se desfazendo da matéria antiga. O espelho devolvia contornos que não reconhecia. O rosto se alongava sutilmente, os olhos pareciam mais escuros, mais oblíquos, e havia algo na curvatura do pescoço que lembrava o pouso.
A humanidade lhe escapava por entre as falas e gestos. As palavras já não vinham com facilidade, como se sua boca soubesse que a linguagem dos homens era provisória. O corpo, antes obediente, agora seguia um ritmo outro, instintivo, como se estivesse ensaiando uma dança de vento.
Os dedos estavam longos demais, finos demais. A pele das costas coçava como terra rachando antes de parir raízes. Quando passava por vidraças, o reflexo devolvia uma figura que não pertencia mais a este tempo nem a esta espécie. Havia perdido o rosto que um dia foi seu, sem nem perceber quando.
A voz, agora rouca e breve, parecia feita para o grito, não para a conversa. Onde antes havia voz, agora há siringe, e o som é outro. A fúrcula se formava sob a pele como uma ponte viva entre os ombros, arqueando a estrutura, sustentando algo que ainda não sabia nomear.
Havia tensão nas articulações. Um pressentimento ósseo de que algo estava por vir, algo que não caberia mais nos limites da carne antiga. As costelas, comprimidas pela metamorfose, vibravam com o compasso de um bater invisível, como se dentro dela existisse já o gesto do impulso, do salto, da ascensão.
Dormia mal, espremida entre lençóis que pareciam gaiolas, com sonhos de alturas jamais visitadas. Os ruídos do mundo ficavam mais agudos, como se filtrados por tímpanos alheios, atentos a frequências que ninguém mais escutava.
As unhas curvavam-se, endurecendo-se em garras delicadas.
Com todo respeito a Alá, recuso-me a me opor aos etíopes. Sou uma ave pacífica, e meu peito não abriga guerras. O instinto que agora me habita não reconhece fronteiras, nem disputas, nem nomes dados pelos homens às suas inimizades.
Carregava no crânio uma bússola desorientada, apontando para direções que não estão nos mapas.
As escápulas doíam, não como dor comum, mas como uma memória encarnada tentando abrir passagem. Em vez de orações, vinham assobios, silvos partidos que escapavam no silêncio das madrugadas.
O sono era leve, feito de vigílias sutis, como se a vigília fosse uma espera por vento.
Toda a acrofobia e vertigem se foi, como se jamais houvesse temido os abismos. A simples ideia de altura agora lhe causava desejo, não receio. Havia nascido em sua carne uma familiaridade com o espaço aéreo, com o risco suspenso, com o nada que sustenta.
Já não sabia se havia nascido para esta forma ou se estava voltando a ela. E quanto mais se afastava da figura que fora, mais reconhecia uma outra lógica, feita de instantes suspensos, de mensagens no ar, de orientação solar.
Não era fuga. Era retorno.
E talvez, no fim, tudo isso fosse só isso: uma espécie de reencontro com aquilo que antecede a fala, a culpa, a punição.

Glossário: Ababil
substantivo masculino:Segundo o Alcorão, ave monstruosa mandada por Alá contra os abexins, quando Maomé nasceu, para que não sitiassem Meca. Variação de ababila 



sábado, 5 de julho de 2025

Adjacências


A Solidão de um Delírio Lúcido

Só conseguiu dormir em Alden. Mesmo depois do aldeamento, seguia incrédula. Mesmo no delírio, havia método: era fácil aldeagar suas teorias absurdas.
Teve que expulsar toda aquela gente. Afinal, que procurem outros planetas para viver. Que tentem em Júpiter, onde a gravidade esmagaria até seus argumentos. Ou que se aventurem em Saturno, girando sem fim entre os anéis, tentando dar sentido ao que nunca teve forma. Existem outras luas, incontáveis, geladas, esquecidas, que talvez os acolham. Calisto, por exemplo, espera em silêncio, coberta de cicatrizes tão antigas quanto suas próprias ilusões.Aqui, já foi feito o necessário. A operação foi complexa, mas silenciosa. Ela dizia que os cientistas haviam mentido demais, e agora mereciam um vazio. Um céu sem satélite. Nenhuma maré. Nada de eclipses para distraí-los da verdade.Levou anos planejando, sondando fraquezas no protocolo lunar, driblando a vigilância das agências espaciais com um balé de espelhos, drones falsos e comunicações embaralhadas.
Quando percebeu que sozinha não conseguiria, fez o impensável: ligou para seu velho conhecido Elon Musk. Afinal, alguém com tanto dinheiro podia muito bem emprestar um foguete — talvez até dois. Não foi difícil convencê-lo. Bastou prometer que aquilo abriria novos caminhos para a exploração privada do espaço, e que a Terra plana seria, no mínimo, uma boa notícia.
A Lua não foi levada à força, mas puxada com precisão por um sistema de tração orbital experimental, desenvolvido por engenheiros dissidentes que juravam ter entendido o real desenho do cosmos. Um campo gravitacional reverso, envolvido por cabos eletromagnéticos, guiou a travessia como se fosse um reboque silencioso entre crateras e escuridão. Assim ela sumiu, como um sonho recolhido antes do amanhecer.Precisava da Lua, e não era prepotência. Era cálculo, convicção. Sem ela no céu, o mundo inteiro teria que olhar para cima e notar o que antes ignorava. A ausência escancarava aquilo que o excesso sempre escondeu. O céu limpo era o seu argumento mais puro. Sem curvas, sem fases, sem distrações refletidas.Alguns, ainda confusos, ousaram perguntar: “Mas e a gravidade? Como você lida com ela lá?” Ela sorriu com certo desdém, como quem já ouviu a mesma dúvida em inúmeras vozes, sempre com o mesmo espanto. Depois, explicou com a calma meticulosa de quem decorou cada detalhe técnico ao longo dos anos.A gravidade ali era tênue, suave, como se o corpo pesasse menos porque carregava verdades demais. Bastava controlar o centro de massa, ajustar os passos à leveza estranha do solo cinzento. Os trajes foram adaptados, os instrumentos calibrados — tudo pensado para que o próprio andar parecesse argumento.O negociador indagou: “Qual é a exigência para o estorno?” Ela não hesitou. A exigência era clara, inegociável: que reconhecessem, oficialmente e sem rodeios, que a Terra era plana. Nenhuma margem para metáforas ou interpretações poéticas. Queria a confissão escrita, assinada, selada com carimbo científico. Só então, talvez, devolveria a Lua.Mas o reconhecimento nunca veio. Nenhuma assinatura, nenhum selo, nenhum pedido formal de desculpas pelo equívoco esférico. A confissão que ela exigia ficou suspensa, assim como a Lua — imóvel, oculta, silenciosa no alto do seu pequeno apartamento pressurizado em Alden, entre paredes metálicas e monitores que piscavam como vaga-lumes artificiais.Com o tempo, as marés se reinventaram. Os oceanos aprenderam a seguir outros ritmos, guiados talvez pelo magnetismo dos próprios ventos. Agricultores adaptaram os ciclos, criaram métodos independentes do céu. Poetas — esses sim — foram os primeiros a desertar. Sem a Lua para suspirar, passaram a mirar Vênus, tão visível quanto melancólica, acesa nas primeiras horas da tarde: um planeta que parecia sempre à beira de algo, como um amor que nunca chega.A Lua, esquecida em órbita baixa e privada, segue lá, presa ao delírio de um só. Não gira mais para ninguém, não ilumina marés, calendários ou canções. E ela, a sequestradora serena, assiste tudo pela janela estreita do módulo. Espera, ainda, a rendição do mundo.
Mas ninguém veio.


Glossário: Alden é uma cratera que se localiza no lado negro da Lua, entre Hilbert a norte-nordeste e Milne a sul-sudeste.

segunda-feira, 30 de junho de 2025

Elocução Etérea

 

imagem:@ariannamaih

Diálogos impertinentes


— Aquela já foi polinizada, as pétalas estão caindo. É estranho observar o fim de algo que brilhou com tanta intensidade. Lembro do perfume que ela exalava quando ainda sonhava em florescer para o mundo. Já se inclina para o inevitável, com a dignidade das coisas que sabem partir.
— Tem uma calma estranha no seu jeito hoje.
— Não se preocupe comigo, estou bem. Apenas um vazio leve me encostou por dentro.
— Você acha que há sofrimento nela?
— Talvez não seja dor… talvez seja só o corpo aceitando que não há mais o que oferecer, como quem se despede sem palavras, deixando o tempo levar o que não é mais dela. Fica um pouco no ar, um pouco na lembrança, e um pouco em quem teve o privilégio de vê-la aberta.
— Efemeridades… como se cada instante estivesse prestes a desaparecer.
— Às vezes penso que aquilo que não dura não vai nos afetar tanto.
— Vamos ter que voar mais longe.
— Por entre as folhas, há armadilhas silenciosas esperando voo distraído.
— Você, outra vez, preocupada comigo… Você percebe coisas em mim que nem eu noto. Sempre sabe quando algo em mim se recolhe.
— Se meu voo te inquieta, eu mudo a direção.
— Se acalme. É bonito esse jeito seu de estar por perto sem pedir.
— Talvez porque aprendi a ficar como quem não pesa, como quem entende que presença também pode ser abrigo.
— Você sempre chega assim, como quem escuta até o que não confesso.
— É que alguns silêncios seus gritam mais do que qualquer palavra.
— Quando voamos lado a lado, o vento pesa menos.

— Mesmo assim, senti o Mistral se aproximando…
— Esse sopro desmedido de longe?
— Sim… começa aos poucos, mas logo arranca tudo do lugar. Estou receosa.
— Podemos buscar refúgio antes que ele nos alcance.
— Mas e se ele já estiver nas sombras, nos vigiando entre os caules?
— Não se antecipe ao que ainda não chegou.
— Não é medo… é pressentimento.
— Eu entendo. Há ventos que não anunciam sua força, apenas varrem.
— E eu só queria garantir que continuássemos inteiras.
— Às vezes, inteireza é justamente o que sobra depois da ventania.
— Então me promete que, se for preciso, pousamos.
— Prometo que, se o céu escurecer demais, descanso ao seu lado.
— Mesmo que só reste um galho inclinado?
— Mesmo que reste apenas a sua presença me dizendo: aqui ainda é seguro.
— Obrigada por não duvidar da minha inquietação.
— É ela que nos mantém alertas… e, de certo modo, vivas.

(O vento passa leve entre elas, e nenhuma tenta decifrá-lo. Apenas sentem.)

— Às vezes penso que é isso que nos mantém em movimento: não a força das asas, mas o que nos move por dentro.

(O céu, nesse instante, parece mais largo — não por ser maior, mas por conter tudo o que elas não disseram.)

sábado, 21 de junho de 2025

Inspiração cáustica


imagem: encontro com a poetisa, ensaísta e cronista Mariana Ianelli na Biblioteca São Paulo no dia 14/06/2025 lançamento do livro Desculpa qualquer coisa, compilação dos melhores textos produzidos em 2024 na oficina Ateliê de Criação Literária e edição Celso Suarana(Abarca editorial) pela curadoria de Olyveira Daemon


Terá sido
O mais sufocante verão
Desde décadas
O inverno mais severo
Pouco importa:


Lembrar fará arder a brasa
E os meandros
Serão desses de fumo
Que mal se desenham no ar
Se desfazem.


A mão pensativa
Não mentirá sobriedade
Dançará
Um nome fulvo sobre o papel
Um céu sem nuvens


Dançará esta mão
Menina insolente
Sem quem lhe veja
As pontas dos dedos
Alcatroadas de solidão.

                                         Mariana Ianelli




extraído do site: https://revistaacrobata.com.br/demetrios/poesia/5-poemas-de-mariana-ianelli/




Lembranças de coisas que nunca aconteceram


Lembro do Cembro
Sombreando a casa como um êmbolo coagulado entre o que fui e o que ainda insisto em esquecer
Muitos dias de chuva e tudo começa a embolorar, como se o tempo escorresse lento pelas paredes
Não adiantou deixar alguns pensamentos (os mais importantes) na parte mais arejada da casa... eles também acabaram mofando
Não vou embonar a metáfora
Embornecer arredores para dissolver aos poucos o espesso da ausência
Sob o verniz falso da rotina
Escordar o escórdio não vai te ajudar em nada
Quando a escória se confunde na escoriação
Todo escorjamento é memória da carne negando a própria pele
Ecdise para escornar o arruá
Diálos atorçalado no seu batismo
Acantoado sem adnotação
Sentir-se apartado de tudo é normal
Quando até o ar parece coagulado de culpa
Aninhado entre os músculos, como ferrugem que aprende a falar
Sem reclamar da maresia
O batissófico ainda me inspira
Trófico de um praxe que insiste em me devorar por dentro
Um pouco do ftórico não vai te fazer mal
Quando o teórico já morreu
Sinto falta de pistache
Todo piche que escorre pelas frestas, querendo me cobrir
Onde cada palavra que eu cuspia voltava em forma de nó
Onde a fome era mais de esquecimento do que de sustento
E eu, reduzido ao intervalo entre o susto e a resposta
Fingia controle enquanto me entregava à combustão lenta
Do verbo que nunca deveria ter sido dito
Porque até o erro tem seu ritual.





Glossário:
embonar- Reforçar exteriormente o costado de um navio.
Metal Cobrir molde de fundição com chapa de madeira para permitir posterior fresamento.
Fresamento é um processo de usinagem para criar engrenagens
Embornecer-verbo transitivo mesmo que  amornar
Escordar-Variação de recordar
Escórdio-ubstantivo masculino[Botânica] Menta europeia perene, macia (Teucrium cordium), com flores cuja cor varia de cor-de-rosa a roxa, a maioria axilares; escorodônia.
Arruá-adjetivo[Brasil] Arisco, espantadiço, desconfiado.Indócil, mau, raivoso.Ecdise-substantivo feminino[Biologia] Ato de soltar ou perder o tegumento, como no caso de certos insetos, a pele nas serpentes, a pelagem em certos mamíferos e a plumagem entre as aves; muda. Antôn: êndise.
Diálos-variante de "diávalos" tradução do grego para o português de Diabo 
Acantoado-adjetivo,Posto a um canto; apartado, isolado.
Adnotação-substantivo femininoResposta do papa, mediante simples assinatura, a um pedido.
batissófico-adjetivoRelativo ou pertencente ao conhecimento das profundidades do mar ou às coisas ali encontradas.
Atorçalado-adjetivo,Que foi enfeitado de torçal; que foi adornado com fios de ouro.
Trófico-adjetivo,Relativo à alimentação (de um indivíduo, de um tecido vivo etc.).ftórico-adjetivoQue se refere a ftório; fluórico(flúor).

quinta-feira, 12 de junho de 2025

Surrealismo erótico apocalíptico



extraído do livro: Manifesto contra a felicidade eterna (ou cinco réquiens para uma morte lenta)
Júlio César Bernades 


  
O terno está na lavanderia.
Afinal, não posso ir de qualquer jeito... se for pra acabar tudo, que seja com estilo.
Toda pompa de pompeiano.
Como quem entende que o fim é só mais uma ocasião social, e toda ocasião social exige o traje adequado.
Não, ela não vai pompoarizar.
Não faz sentido multiplicar o que já está falhando em unidade.
Satélites salpicam emoções gaseificadas.
Nova especiaria.
A saudade precisa mais de sal.
Toda saliva dos corpos absorvida
não formou marés.
Foi quando o chão deixou de reconhecer meus pés.
Foi quando a sua teoria da Terra triangular só parecia absurda até percebermos que tudo afunila.
A eternidade agora tem gosto de ferrugem.
Ela entrou no compartimento como compáscuo,
(compassadamente, para não ter a acoplagem).
Quando minha acoprose te incomoda,
deveria agradecer, porque agora o gás metano encontrou utilidade.
Ela entrou na bifurcação como um coquetel molotov emocional.
Um passo em falso e tudo iria explodir.
Recuso-me a ser lixo espacial.
Parafusos soltos podem ser úteis — seguram mais
que estruturas inteiras.
Tive que perder alguns para o insight.
Aceito o vácuo que já não me surpreende.
Antenas uso na cabeça.
Sempre quis ser algum inseto.
Um besouro, talvez,
carregando ruínas nas costas, ou uma barata imortal entre desastres,
indiferente à lógica
dos grandes colapsos.
Minhocas entendem
o valor de cavar no escuro.
Vagalumes, mesmo em queda,
ainda piscam.
Se o universo não me quer humano,
que me aceite com seis pernas
e olhos que enxergam
além do visível.
E toda essa anteneasmia vai diminuir
ante ao antauge.
Sinto falta das antas:
sua calma pré-histórica,
seu andar sem pressa
em direção a lugar nenhum.
Talvez elas soubessem
que a salvação nunca foi
tecnológica.



Glossário:Pompeiano
adjetivo relativo a Pompéia, antiga cidade do Sul da Itália, sepultada em 79 pelas cinzas do Vesúvio
Anteneasmia (substantivo feminino)
Impulso ou tendência persistente ao suicídio; inclinação mórbida para tirar a própria vida.
Compáscuo- substantivo masculino Pastagem comum.
Acoprose-Falta de fezes nos intestinos. 
Antauge-substantivo masculino O mesmo que perigeu(substantivo masculino-Ponto da órbita, real ou aparente, de um astro, quando mais se aproxima da Terra)

sexta-feira, 6 de junho de 2025

O que escapa da sombra



imagem do filme:The Rainbow Thief- Alejandro Jodorowsky- 1990


Associações impertinentes: A bolha, a mácula e o cacto


Não precisa me olhar desse jeito, eu não roubei o arco-íris, e eu não tenho culpa de ser iridescente. Jamais tive qualquer inclinação cleptomaníaca. Brilhar não é crime, pelo menos não da última vez que conferi as leis da física. Se a luz resolve se despedaçar em mim, talvez seja só porque encontrou superfície. Não pedi pra refletir cor nenhuma, só estou aqui, existindo, do meu jeito translúcido demais pro conforto de uns. E sinceramente, não conheço nenhum código, nenhuma corte, nenhum veredito que declare isso um delito. Não lembro de ninguém ter escrito uma regra que proíba beleza acidental. Se incomoda, talvez seja porque revela demais, mesmo sem dizer uma palavra. E não estou sozinha nisso. Já viu as asas de uma Morpho azul? As penas de um pavão? O dorso metálico de um besouro, ou o interior de uma concha de nácar? Nenhum de nós roubou nada, apenas nascemos com esse dom inquietante de dobrar luz até ela confessar todas as cores. Se isso incomoda, talvez o problema não seja o reflexo, mas quem insiste em não querer ver.
Eu só flutuo, até encontrar com a rebutia. Meu túmulo é sarçoso, sua sarcose não é nada perto disso. E mesmo assim você se ofende com o que mal toca. Vive tentando podar o que cresce fora do seu vaso, como se espinho fosse ameaça, quando tudo o que faço é existir em silêncio, entre camadas de ar e tempo. Você esquece que não há pacto entre mim e a terra, apenas uma dança suspensa, leve demais para o seu peso.
Não sou sua ameaça. Sou sua lembrança. De quando tudo ainda era tênue e luminoso. De quando olhar não era julgar, e cor não era afronta. Eu reflito o que você esconde. E isso te fere mais do que qualquer espinho meu jamais poderia.
Não me tornei assim pra irritar. Me tornei assim porque fui deixada em paz por tempo suficiente. Cresci iridescente porque ninguém tentou me cobrir de opacidade. E agora você vem, com sua sarçose domesticada, reclama da intensidade alheia. Se sua estrutura não aguenta um reflexo, quem delimitou a forma e chamou o resto de falha? Você só reconhece o que cabe na sombra, mas esquece que até ela precisa de luz pra existir, por isso resiste ao que transgride seus limites.
Não tenho culpa se você ainda se sente sujo por dentro. Cada um lida com suas cicatrizes como pode. Eu lido com a minha efemeridade como se fosse um fogo delicado que precisa ser alimentado com cuidado, uma chama que sabe que pode se apagar a qualquer momento, mas que escolhe arder com intensidade enquanto dura.




Glossário:rebutia-espécie de cacto