segunda-feira, 21 de abril de 2025

Inspiração frugal




Imagem:filme A cor da Romã(The Color of Pomegranates)1968
Sergei Parajanov




Manual para um Caos Deliberado


A arte de empilhar é pura organização. Depois, você pode colocar os títulos em ordem alfabética para facilitar na hora da busca por um autor específico. Cuidado com o especilho, você ainda está se recuperando, e esses calhamaços não são leves, principalmente as enciclopédias. Uma especiosidade espectável quando se especula sobre o caos, o espedaçamento e o espeitamento do que se sente. O vento às vezes tenta derrubar tudo, como se testasse sua fé na gravidade e na literatura. As cores também contam histórias. Tente agrupá-las, cores lado a lado criam uma nova narrativa, estilo arco-íris. Sempre funciona. Vai que o cérebro lembra melhor pela cor da capa, mas se o leitor for daltônico, isto será um problema. Nesse caso, experimente sinalizar com símbolos discretos na capa, pequenos traços, pontos ou figuras geométricas.
Estrelas para poesia, quadrados para ciências exatas, triângulos indicando ficção, círculos sugerindo filosofia.
Assim, mesmo que os tons se confundam aos olhos, a lógica permanece acessível. O conteúdo continua mapeado, não pelas aparências, mas pela intenção.Uma linguagem secreta entre o leitor e o acervo,um código silencioso que respeita cada limitação como se fosse estilo. Melhor não deixar a métrica perto de estatísticas demográficas. Ela se assusta fácil. As metáforas dançam, os números marcham, mantenha uma distância elegante. Iletrados virão. Não vai precisar se preocupar com o ilegítimo e o ilenível será subestimado. Seria melhor utilizar o ileísmo até que as margens deixem de ser fronteiras e passem a ser espelhos. O ileísmo protege, não como armadura, mas como disfarce. Ao falar de si na terceira pessoa, desloca-se o centro da dor, distribui-se o peso, dá-se tempo ao entendimento. O afastamento cria frestas por onde o sentido escorre sem ser coagido. É nessa dissociação que algo nasce, algo que não depende do verbo nem da norma, mas do gesto de se colocar diante do mundo com olhos desalinhados. Quadrúpedes virão, guiados pelos quasares, e a aproximação se dará em passos baixos e firmes. Chegarão arrastando séculos de silêncio sob as patas. Serão criaturas que não pedem licença ao vocabulário. Você terá que fazer algo que interrompa o avanço sem violência, algo que desfaça o chamado sem negar a presença.Talvez dispor espelhos voltados para o solo. Ruídos agudos em frequência quase inaudível, nada agressivo, apenas inóspito. Eles entenderão. Não se trata de hostilidade, mas de delimitação. O espaço precisa manter sua arquitetura simbólica, e nem todo visitante se alinha ao pacto da leitura. O silêncio, aqui, tem outra densidade. Melhor evitar que patas cruzem a soleira onde olhos ainda tropeçam em sílabas. Sapientes virão e vão dizer que já sabem tudo. E, claro, virão com suas teorias prontas, fórmulas que juram universais. Dirão que está desorganizado, que falta método, ignorando que o caos aqui é deliberado, milimetricamente caótico, feito para testar a percepção, não para agradar a norma. Vão rir dos símbolos nas capas, achar “poético demais”, “infantil talvez”, sem saber que cada sinal é uma senha, uma chave pequena demais para mãos tão ocupadas com teorias. Falarão com a segurança dos que acreditam ter encerrado o diálogo com o mundo, como se o tempo já lhes tivesse contado todos os segredos e nada mais restasse senão repetir conclusões. Ignorarão os silêncios entre as linhas, os desvios que o olhar faz quando tropeça numa ideia ainda sem nome. Não notarão que o que permanece quieto não está inerte, mas à espera.Porque há formas de saber que não se impõem, se insinuam. E aquilo que realmente transforma não grita, apenas respira. Afirmando que os conceitos são reciclados, que o pensamento ali contido gira em círculos antigos. Não enxergarão as dobras da memória que se alojam em cada parágrafo, nem os desvios sutis que uma frase pode operar dentro de quem lê com presença. Lepismas virão, atraídas pela quietude e pelo sabor antigo das folhas esquecidas. Serão notadas primeiro pelos rastros tênues, pelas bordas gastas, pelos vestígios quase invisíveis entre capítulos. A resposta será silenciosa, meticulosa. Frascos de cravo escondidos entre volumes, pequenos sacos de lavanda costurados à mão, repousando junto aos diários. A brisa será medida, as janelas abertas apenas nas horas certas, jamais sob o sol direto. Alguns textos serão envolvidos em tecido de algodão cru, outros, revezados em posição para que o repouso não seja abrigo.


Glossário:
Especilho
substantivo masculino[Medicina] Tenta cirúrgica.
Tenta
substantivo feminino[Medicina] Espécie de estilete para sondar fendas.

terça-feira, 15 de abril de 2025

Inspiração vítrea


Monólogo de uma ampulheta



Barchan escorrendo em meu âmago, cada grão revela um sussurro do tempo que se esvai em silêncio. Cada instante desvanecido se transforma em um eco que se dispersa pelo infinito, carregando consigo as marcas de momentos que jamais retornarão.
Enquanto as sombras do passado tentam reavivar memórias há muito adormecidas, sinto o peso suave dos instantes esquecidos. Não estou sendo saudosista, mas eles eram mais felizes e não sabiam. Mesmo com a pouca tecnologia, o encanto da simplicidade fazia com que cada encontro e cada gesto tivessem um brilho próprio. Pode me chamar de ludita: encontro refúgio na ternura de uma época em que o toque e o olhar diziam mais do que palavras digitais.
Havia magia na demora dos acasos e na riqueza dos silêncios compartilhados, onde cada riso e cada lágrima formavam a tessitura de uma existência plena. Talvez seja tolice, mas prefiro abraçar a memória dos instantes que se estendiam, longos e intensos, onde a alma se revelava sem artifícios. Tento abafar a barafunda externa. Preciso de silêncio para escutar o que se perdeu entre os excessos.
O tempo ressoa em ritmos esquecidos, sussurra verdades que poucos querem ouvir. Há algo essencial na espera, na contemplação do imperceptível, no intervalo entre o que foi e o que será. Sigo resistindo à vertigem dos dias rápidos, aos sentidos anestesiados, às conexões que não tocam.
Caminho sobre lembranças que se desfazem como espuma ao toque, mas que ainda guardam o peso de tudo o que já foi vivido. Contudo, esta baragnose predominante infiltra-se em meus pensamentos vítreos, refletindo distorções de uma aridez íntima. A rispidez implacável corrói convicções e esculpe labirintos de dúvidas.
Meus olhos translúcidos jamais contemplaram o mar, só conhecem miragens, ecos de águas que nunca tocaram. A torneira pingando na pia marca o compasso de um tempo implacável, cada gota, um lembrete de ciclos intermináveis. Sinto sede, mas não de água, é um anseio que escapa à compreensão, um vazio profundo que nem o fluxo incessante preenche.
O som ritmado ecoa como uma memória persistente, desenhando círculos na superfície imóvel, enquanto a secura invade, convertendo pensamentos em poeira. Mudei desde ontem, hoje pareço o Atacama. O bafo no vidro não é respiração, é a mudança brusca de temperatura. Hoje vai ser um daqueles dias. As pessoas estão cada vez mais preocupadas com coisas fúteis, e as inquietações se multiplicam, sufocadas por ruídos sem substância.
Olhares vazios percorrem telas brilhantes, buscando um sentido que se dissolve antes mesmo de ser compreendido. O que antes era encontro, agora é dispersão. O que antes era troca, agora é consumo. Cada gesto automatizado alimenta um ciclo que não cessa, um redemoinho de urgências que nada significam.
Observo a pressa, a ânsia por algo que nunca chega. Palavras ditas sem serem sentidas. Risos que não encontram eco no peito. Promessas feitas apenas para preencher o silêncio. Agradeço à criança que me quebrou, agora sou uma campânula. Tudo se esvai antes de ser sentido, como se houvesse medo daquilo que permanece.
Mas eu, na minha transparência imperfeita, me mantenho imóvel, escutando as vibrações do que persiste, do que ainda pulsa sob a superfície.

terça-feira, 1 de abril de 2025

Descrição de imagem


 imagem: Filme Amer 2009( Hélene Cattet)



A essência do caos


A saliva é salgada, magma no catagma do tagma. Não espere de mim as mais doces palavras; o óbvio não me atrai, e o trivial me entedia, talvez um sintagma: a essência do caos. Ela sinalizou, em silêncio, que tudo estava bem, com a suavidade do sinalagma entre nossas sombras e vícios.
O buraco negro está prestes a te engolir. Até quando você vai persistir nisso? É muita ousadia de sua parte querer afrontar toda essa singularidade gravitacional. Se você está procurando por distorções, há opções mais viáveis. Em vez de se lançar no abismo do desconhecido, sei que tudo é acirrante, toda essa aciesia de um acismo não vai te trazer paz.
Posso te mostrar meu universo particular, onde as leis da física são apenas sugestões e a matéria se dissolve em pura percepção. Lá, não há necessidade de explicações ou preceitos, apenas a imersão na fluidez da existência. Aqui, onde o tempo e o espaço se entrelaçam, você poderá ver que a linearidade é uma ilusão confortável para mentes que buscam segurança. Onde você vê escuridão, eu enxergo luz em seu estado mais puro, uma luz que não brilha de fora, mas em cada átomo que compõe sua essência.
Aqui, não há espaço para dualidades; o que você chama de vazio é apenas o campo fértil onde novas formas podem nascer. Em meu universo, as distâncias não são medidas em unidades fixas, mas em sentimentos, em pulsações, em momentos de pura conexão. A parestesia sentida não era má circulação, mas algo que transcende as limitações da carne e alcança a alma. Cada sensação, cada vibração, não é mais um simples reflexo do mundo físico, mas uma expressão do que está além, algo profundo e inefável, que não pode ser tocado, apenas sentido.
Agora que o vazio foi preenchido pela imensidão do possível, você começa a perceber que não há separação entre o que é e o que poderia ser. As estruturas rígidas que você conhecia, as certezas que formavam as bases da sua percepção, começam a se desintegrar diante de você, dissolvidas pela maré do entendimento expandido. A matéria, que você acreditava ser sólida, se desfaz em ondas de energia e intenção, onde a forma é apenas um reflexo temporário da verdadeira essência.
A realidade, como você a conhece, se desfaz e se mistura, tomando novas configurações, agora maleáveis, sem uma definição absoluta.

quinta-feira, 6 de março de 2025

Do caos à adaptação:caminhos dilacerados



Resgatar a borboleta do balastro


Abrastol não vai ajudar, talvez bromalina, quando tudo é labrosta. Aguenta o brogue? Não haverá descarrilamento por sua causa. O ambiente é áspero e indiferente, onde até o mais frágil ser pode desaparecer sem deixar vestígios. A bromélia teria sido uma escolha mais apropriada para a desova. Nada é mais deslumbrante à vista. A sensação é de que você já alcançou o ponto mais distante. Lembra quando éramos nômades? E tínhamos maior flexibilidade para nos mover? Agora, a sensação é de que tudo se desfez, e o único remanescente é esse trem fantasma, vagando sem rumo, ecoando em silêncio, como uma lembrança distante do que já fomos. Cada parada, uma despedida não dita; cada trilho, uma memória que se esvai. O trem leva com ele não só o que já fomos, mas as esperanças que deixamos para trás, as almas perdidas no vazio de um caminho que não existe mais, enquanto o horizonte se dissolve no nevoeiro do que poderia ter sido.

Acho que o que você está fazendo é uma forma de autodestruição. Não te repreendo, já tive essa ideia em mais de uma ocasião, mas parece que algo me impede de tomar essa decisão. Talvez seja a lembrança do que éramos ou o medo do que restaria quando o trem parasse de vez. O vazio parece imenso, mas, ao mesmo tempo, o movimento é a única coisa que ainda nos mantém vivos. Somos, de alguma forma, prisioneiros das escolhas que fizemos. Ah, o livre-arbítrio talvez seja o culpado de tudo isso que está acontecendo, essa ilusão de poder escolher, de controlar, quando, na verdade, estamos apenas seguindo um destino traçado por nossas próprias mãos, sem perceber. As opções que um dia pareceram tantas agora se reduzem a um único caminho, estreito e sem luz, onde cada passo parece nos levar mais para longe daquilo que pensávamos ser o nosso lugar.

Dizem que a gente acaba se moldando ao que nos é imposto. Agora que te salvamos do basilisco fumegante, o básico, temos as vicissitudes, o mistral, talvez com uma Guanandi, toda basiofobia controlada. Mas ainda há o calor do siroco, que nos enfraquece aos poucos, como se nos consumisse de dentro para fora, até que não reste mais nada além de uma sombra. E há a neblina, que pode esconder até os piores perigos, aqueles que surgem nas margens de nossos pensamentos, minha basite, sua Beauveria bassiana. Não há beleza sem dor, não há vida sem luta. Somos como ela, buscando o néctar da existência, mas cada toque do vento é um risco, cada escolha pode ser fatal. A borboleta, assim como nós, se adapta aos ventos e às tempestades, mas, no fim, a fragilidade da sua alma é tão evidente quanto a nossa. Vulnerável, sempre à mercê de predadores que a observam com olhos famintos, como as aves que a caçam no ar ou as aranhas que aguardam em suas teias silenciosas.

sexta-feira, 28 de fevereiro de 2025

Topografia do Desconforto

imagem: Filme -O Livro de Cabeceira (Peter Greenaway, 1996)


Monólogo de uma verruga

Sou dessas que estouram. Não sei conter meus impulsos, vontade de ser vulcão, e, quando rompo, é porque já transbordei em silêncio por tempo demais. Pápula na escápula de um crápula, sentem mais asco de mim do que a dor que eu causei. Sou o erro que ninguém admite, a falha que insiste em existir, me espalhando em cada gesto, em cada palavra não dita. Fui nutrida pelo desprezo, e o calor é sufocante, e você ainda insiste em usar roupas pretas. Toda essa sua sudorese está me incomodando. Transbordava um lago de seu umbigo, seu corpo é estranho, pelos que se erguem e se curvam como raízes teimosas. Parece que estou em uma selva, um emaranhado caótico onde cada haste rebelde se inclina e se entrelaça sem direção.
O ar abafado faz tudo parecer mais denso, mais pegajoso. O suor escorre, formando trilhas úmidas que deslizam pela pele quente, carregando consigo o sal e o cansaço do dia. Aqui, no meio desse território selvagem, sou um ponto fixo, epílogo de algum texto que você não conseguiu terminar, como uma palavra solta que resiste a desaparecer, apesar das tentativas de ser apagada. Cada respiração sua reverbera, e eu sou arrastado, incomodado pelo ritmo frenético de suas pressas e impulsos. Seu corpo se move, mas em um padrão que não me escapa, como se cada passo fosse um capítulo novo que se repete incansavelmente, sem jamais alcançar um fim.
Uma fissura na superfície imperturbável de seu ser, resistindo aos toques distraídos, do prurido inconsequente, toda titilação sem titubear a rubefação. Parece que estou em Marte, um solo árido, inflamado, onde cada mínima perturbação acende um desconforto latente. Vermelho, latejante, pulsando em resposta ao menor estímulo, como se a própria atmosfera pesasse sobre mim, comprimindo, testando minha resistência. A fricção entre nós é inevitável. Sua pele me repele, seu toque me afronta, mas, mesmo assim, permaneço.
Poros que se abrem e fecham como pequenas bocas famintas. Confesso que tudo isso está me assustando muito. Seria melhor se fosse uma cratera na Lua, talvez Abulfeda, sua calma inerte, sem a constante tensão do corpo que se move e se agita. E a falta de gravidade... como seria libertador! Eu flutuaria, sem essa pressão incessante, sem o peso do toque, sem a força da fricção me arrastando para o limiar do desconforto. Não haveria mais o calor que me consome, o suor que me prende em cada curva de sua pele.
Eu seria apenas uma nódoa, um vestígio etéreo no vazio, sem essas pressões que se acumulam em cada respiração sua. Gasta todos os dias um quilo de maquiagem para me esconder, como se ninguém tivesse imperfeições, como se eu fosse um erro que não deveria ter acontecido, um detalhe fora de lugar na composição meticulosa da sua aparência. Todo este seu narcisismo me preocupa. Parece que sua obsessão com o reflexo te consome mais do que eu jamais poderia. Sua pele, esse palco onde desfilam suas inseguranças, não é tão imaculada quanto você quer acreditar.
Mas eu estou aqui, apesar dos disfarces, dos filtros, dos espelhos que você evita encarar sob luz forte. Sou ínfima, mas sou uma afronta, uma imperfeição que resiste, um lembrete incômodo de que seu controle tem limites.

sábado, 15 de fevereiro de 2025

Lirismo esdrúxulo

 

Monólogo de um poste


A ptose pós-albaroo da cegonha, foi utilizada a tremonha, imprescindível para a criação de um deserto. A areia, antes contida nos alforjes do vento, verteu-se em sulcos profundos, cobrindo os vestígios do que um dia foi húmus fértil. O sol, cúmplice silente, consolidou a secura com sua língua de fogo, enquanto as sombras encurtavam-se até tornarem-se apenas memória. Vontade de ser pirâmide, toda langonha terá consequências: a gravidez era pré-eclâmpsia, no orto, só virão siriris em busca do calor. Rodopiam errantes, tangenciando o brilho efêmero, desenhando órbitas trêmulas no ar denso. Alguns ficam sem asas e acabam virando cupins.
Espalham-se pelo solo úmido, tateando frestas, buscando fendas onde o destino os acolha. Os que encontram abrigo somem na escuridão, fadados a erguer reinos ocultos sob os pés desatentos. Outros, desprotegidos, sucumbem ao roçar voraz das formigas, ao peso indiferente dos passos, ao tempo que tudo dissolve. O farfalhar mínimo se dissolve na penumbra, enquanto a brisa dispersa corpos exaustos. O ciclo persiste, indiferente às súplicas do instante. Piscava de propósito, em código morse. A transmissão de dados é importante quando todos estão vivendo em uma bolha de incoerências, onde as palavras perdem peso antes de alcançar um destinatário, chamamento para as Morsas. Não sei por que gostava delas, talvez pela quietude que se escondia na escuridão, pela maneira como surgiam e desapareciam sem avisar, ou simplesmente pela aliteração. Toda gambiarra que me envolve tinha algo de efêmero, como se fosse uma tentativa inútil de tecer significado na vastidão do nada. A precariedade das conexões se refletia nas pequenas faíscas que saltavam. O lirismo contemporâneo exigia isso, uma rendição ao invisível, um abandono do corpo à abstração. O genitor não era íntegro, nunca voltou para ver sua prole, e assim a ausência se espalhou como uma névoa, envolvendo tudo em sua indiferença. Não vou deixar mais ninguém se aproximar de mim, muito menos perros que me usam como mictório; serão todos eletrocutados. Protesto contra esta cidade apática, que mantém suas luzes acesas, mas apaga pessoas. Ruas ermas, calçadas trincadas, sombras projetadas sem dono. O asfalto, quente e impassível, engole passos hesitantes, afoga vozes antes que se tornem clamores. Só vou deixar colarem poesias em mim. Servirá de escudo contra a rigidez pétrea do tempo, contra a erosão da indiferença. Cada verso colado à pele será uma armadura de palavras, uma trincheira onde a memória resistirá ao esquecimento. Se a cidade apaga pessoas, então que ao menos os ecos fiquem gravados nas esquinas, nos postes, nos muros descascados.
Mas a tinta desbota, o papel se desfaz sob a chuva ácida das horas, e os olhos que leem seguem em frente, distraídos. Precisamos de algo mais resistente, como tatuagem, que chame a atenção do transeunte apressado, uma cicatriz que não se apaga, que grite em silêncio contra a dissolução. Frases esculpidas na carne do concreto, gravadas a ferro e ausência, talhadas no esquecimento para que a cidade se lembre do que insiste em soterrar.
No reflexo dos vidros embaçados, rostos se desmancham antes de se tornarem lembranças, borrões fugidios que o tempo devora sem remorso. Insisto em deixar marcas onde o apagamento é regra, cicatrizes que latejam sob a superfície endurecida das ruas. Se ninguém lê, que ao menos sintam, como se fosse um choque, um arrepio, um incômodo que os obrigue a parar. Agora vou ter o descanso merecido, mas há sempre um resquício de energia circulando, uma vibração imperceptível sustentando o que resta da memória. O silêncio não é absoluto—pelo contrário, carrega murmúrios invisíveis que se prendem à superfície áspera, ecos de passos esquecidos, frases interrompidas pelo ruído de motores ao longe. Nunca entendi o motivo de tanta pressa. Se tudo se repete, se os caminhos são sempre os mesmos, se os dias se sucedem sem novidade, por que a urgência? As horas se dobram sobre si mesmas, mas ninguém percebe. Correm, como se houvesse um destino inadiável, como se o tempo pudesse ser domado pela velocidade dos passos. Mas eu sei que não há chegada, apenas o desgaste, a erosão lenta dos que seguem sem notar o que deixam para trás. Coleciono os ecos que não encontram abrigo, cada despedida feita em silêncio.


terça-feira, 4 de fevereiro de 2025

Anagramas Marítimos

 
imagem: Rio Potomac, onde ocorreu uma colisão de um helicóptero e um avião no dia 29/01/2025


Agora que seu líder é um fascista fascíola, vai ser difícil o adejo; acostume-se com o redil e regule o fluxo de suas reações, talvez tenha fascipenes e todo fascínio aéreo vai se acabar. Exúvio? O radome não sente nenhum eflúvio, todo aquele perfume de alfazema que costumava acalmar os ânimos e trazer serenidade agora se perde na indiferença tecnológica, e longarinas dificultam sua fluidez, e o trem de pouso flutua de cabeça para baixo, preso no vórtice de uma espiral invertida. O horizonte artificial já não indica estabilidade, pois o giroscópio enlouqueceu, embriagado por turbulências morais. A fuselagem range com a tensão de parafusos gastos, como se protestasse contra a trajetória imposta. O manche que esquanche e se torne um apêndice inútil, uma engrenagem que ninguém obedece. O transponder pisca em uma cadência errática, atraindo os peixes mais curiosos, código cifrado, SOS disfarçado de normalidade, algoritmos repetindo mantras ocos. O painel, como um altar profano, onde a própria matéria hesita entre colapso e resistência, suspensa no limiar de uma rendição sem testemunhas. Onde a fronteira entre dentro e fora se dissolve, e o casco já não protege, apenas atrasa o abraço do abismo. O altímetro maltreito, sem ponteiros, marca uma distância que já não é mais mensurável. A deriva já não é escolha, mas sentença, traçada em rotas que não levam a lugar algum. O horizonte, se ainda existisse, estaria dissolvido em uma distopia onde a noção de altura e profundidade se tornou abstração. Turbinas em agonia contida, lâminas dilacerando, esgarçando sua própria estrutura, agora são túneis para zabucaís famintos, que espreitam o vulto metálico como um cardume hipnotizado pela estranha criatura que invade seu domínio, onde a água se infiltra lenta e inexorável, preenchendo os vazios deixados pelo ar que escapa em bolhas dispersas. Outros virão antes que você perceba, prejerebas no prejudicado ambiente, deslizando na neblina líquida como espectros que se alimentam da decadência, caindo sobre as feridas abertas da máquina, em busca de fragmentos que restaram das suas formas, antes vivas. O fluxo da água se intensifica, um murmúrio crescente que se mistura ao rangido da estrutura, onde o metal já não é mais aliado, mas um corpo que se derrete nas mãos do tempo, devorado por um oceano implacável. As fendas, agora mais profundas, permitem que as sombras se arrastem por dentro, invadindo os interiores, onde os sistemas de navegação piscam, as luzes vacilam em uma última tentativa de manter a ilusão de controle. Mas os prejuízos não são apenas estruturais, são existenciais. A caixa preta foi encontrada entre os destroços, coberta por fuligem e detritos, mas ainda intacta, um testemunho dos últimos momentos, pronta para revelar a verdade sepultada no caos. Isso tudo é fuselagem, isso não te concederá as asas que almejas, nem se sugar uma frota; a flotilha precisa de mais baunilha, a baritimia da barita.

sábado, 25 de janeiro de 2025

Anagramas urbanos



Sombras no Labirinto da Percepção



Cidade adefágica
Os becos são labirintos sem saída
Onde a dor se curva, mas nunca cede
Cada passo dado reverbera no abismo do ser
Como se o corpo carregasse todos os ecos de um mundo em colapso
Uma adega para o desértico
Deixa tudo adélido
Ademais toda essa adesmia não inspira
Nunca quis me expor em demasia
Toda essa batianestesia não instiga
Erguem-se batibandas em torno da percepção
Não vou negar que sempre fui batíbico
Moldado pelas ondas que sempre busquei enfrentar
Imaginei algo bucólico
Bucolabial contra o silêncio
Estou lendo Bukowski
Sem se importar com a pressa
O tempo se arrasta como uma sombra,
Desaparecendo na neblina do indizível
Onde o corpo se torna prisão e a mente um refúgio.

sábado, 18 de janeiro de 2025

Inspiração antropofágica


Vultos de Outrem: ao morcego no falso Abaporu



Não te reconheço mais, parece que o tempo trouxe mais experiência e algumas curvas a mais. Todos os dias, às 11:48 da noite, a sombra do seu reflexo desliza pelas paredes do meu quarto, se revela como uma avantesma, aparecendo disforme sob a cabeceira da cama. A cada noite, essa presença etérea se torna mais familiar, mas, ao mesmo tempo, mais distante. Ela se movimenta com leveza e parece desafiar as leis da gravidade. Talvez o sentido disso tudo seja simplesmente ser um quadro em minha parede. Tudo bem, providencio uma moldura para te enquadrar. Qual opção agrada mais? Um enquadramento clássico, com acabamentos dourados e detalhes ornamentais, para dar um toque de sofisticação? Ou, talvez, um contorno minimalista, de linhas retas em madeira natural, que destacaria sua essência de forma sutil. Se preferir algo mais moderno, um ornato preto de alumínio seria perfeito, trazendo contraste e contemporaneidade. Por outro lado, uma moldura rústica, feita de madeira envelhecida, daria um ar mais acolhedor e nostálgico.
Talvez o incômodo seja só inveja do Uropaba. Ela faz alguma coisa na lavanderia enquanto espera as roupas terminarem de lavar, mas não sei exatamente o que. Pensando em algo, distraída com seus próprios pensamentos, talvez seja melhor não saber. Agora tenho companhia, e o quiróptero parece estar com ciúmes. Deseja ser único. Com suas asas delicadas e olhar penetrante, observa tudo com uma mistura de curiosidade e possessividade. Ele não aceita dividir o espaço que conquistou; sua presença é um lembrete constante de que a solidão pode ser tanto um abrigo quanto uma prisão. Ele é um guardião, sua vigilância constante não permite distrações. O olhar prescrutador atravessa o intrínseco, desvendando segredos que nem mesmo reconheço em mim. É quase como se ele, com sua presença imponente e inquieta, estivesse marcando um território que nunca lhe pertencerá por completo. Não quer compartilhar a sua refeição com ninguém. Quando eu estiver melhor, talassemia aparente, minha vulnerabilidade, que todos temos, a sua e a luz. Se eu ascender, o exorcismo será feito e você desaparecerá em silêncio, dissolvendo-se na penumbra que insiste em permanecer. Talvez o brilho seja suficiente para revelar o que realmente habita entre nós, desfazendo sombras e ilusões.
O fim de sua existência parece inevitável, como se a claridade tivesse o poder de dissolver os mistérios que tanto teme, escondidos sob a superfície, quase imperceptíveis, mas sempre presentes. Ainda assim, hesito. Há algo na sua presença que desafia o desejo de expulsar. Não é apenas sobre afastar a escuridão; é também sobre entender o que ela sussurra nas entrelinhas do silêncio. Talvez haja algo que precise ser ouvido antes de desaparecer. Mas, se o cistugo aprender a ligar o interruptor, será uma vingança. No entanto, a luz o incomoda e o desorienta. Ele ignora a cístula e não está mais polinizando as flores. Deixou de ser frugívoro e agora presta atenção na fístula lacrimal.
Seria pertinente considerar a inclusão de uma versão da pintura Verão, de Giuseppe Arcimboldo? Serviria de escudo, proporcionando defesa. Ou O Filho do Homem, de René Magritte? Ou talvez eu possa usar um capacete de abóbora e um colar de melancias. Não quero ser confundido com Carmen Miranda. Está calor, não quero usar a guante. E se o morcego for apenas uma criação da minha mente, como dizem? Como explicam o guano encontrado em meu travesseiro? Ou talvez eu seja o morcego, algo com que eu deva me preocupar? Talvez ser um morcego signifique liberdade, ou até um chamado para algo maior que ainda não compreendi: uma parte de mim que desperta à noite, que enxerga no escuro e se alimenta de sombras. O que importa é que estabeleceu-se um vínculo silencioso com a sombra. Há um peso invisível que nos molda, que insiste em permanecer, mesmo quando tentamos esquecê-lo ou ignorá-lo.

terça-feira, 7 de janeiro de 2025

Inspiração pós-festejos: continuação alitera

 





FIM DO ANO


André Carneiro


0 futuro é um pássaro assustado
na direção da minha testa.
Recuo, às vezes, mas a terra
gira satélites implacáveis.
Calendários são
asas na madrugada
dissolvidas à meia noite.
Enterro o relógio,
misturo a matemática,
não adivinho se é sábado, aniversário
ou desfile da independência ou morte,
Chove, as nuvens surpresas
escorrem no cimento,
a terra seca morre sepultada
com seus olhos de areia.
Algumas espécies desaparecem hoje,
os lemingues engolem as ondas
no suicídio inexplicável.
Perdemos o centro do universo,
abandonados pelos deuses
somos primatas apenas.
Falta o alienígena descer
da nave resplandecente
e partir de novo movendo
frustrados tentáculos.
Nossa escrita
nem golfinhos
compreendem,
mas decifro a língua
da abelha dançarina.
Há muita esperança no amor.
Todos se cumprimentam,
mostram dentes limpos,
presentes com largas
fitas vermelhas.
Escrevo o poema adolescente
esquecido na minha inocente cabeça.

***

A metáfora já está prístina


A sístole só na Sistina

Eliciar elipses

Porque não quer dizer que a inspiração veio pós ida a pistrina

O pâncreas já parou de produzir tripsina

E ninguém se importa com anagramas viscerais

É irrelevante saber que romances foram escritos pós ida ao alcoice

Quando o épico é píceo

Devaneios já estão caquéticos & manquitolas

Quando é tola toda forma de pensar

É tudo tolã

Ela disse Olá quando estava indo embora

Fiquei sem entender

Quando se esvai a razão em mero delírio

Você pode se adaptar a essa maneira de viver

Sem se preocupar com o futuro que agora está insopitável e traz insossego

Todas suas expectativas frustrantes relegadas

O oráculo falhou em responder todas as incertezas

De onde viemos, para onde vamos?

A percepção do presente e do passado se perdeu

Todo esse anacronismo me faz pensar no que ainda não fiz

O tempo desperdiçado com futilidades

Devo considerar as viagens fora dos meus pensamentos?

Devo me preocupar com o que está além da minha percepção?

Ou devo me concentrar no que está diante de mim?

A realidade tangível é tão inexorável que, por mais que nos esforcemos para moldá-la ou negá-la

Ela nos transcende com uma força incontrolável, levando consigo nossas ilusões, nossos desejos e até mesmo nossa essência, deixando-nos frente a frente com a verdade nua e crua de nossa existência finita e imperfeita.