quinta-feira, 17 de julho de 2025

Inspiração marítima

 
imagem:@visualfodder @murjanabodeba

  

A fâmula de Poseidon


Não aguento mais essa maresia, parece que o mar quer invadir minha casa por osmose. Tudo gruda, tudo enferruja, até meu juízo está oxidando. O mar não sabe ficar no lugar dele? Às vezes me pergunto: o que eu fiz para merecer isso? Talvez sejam os desertos de dentro. Se eu fosse uma porífera geneticamente modificada, poderia sugar tudo isso — cada gota dessa umidade insistente, cada gota dessa tristeza que escorre sem permissão.
Certa vez me perguntaram: "O que você vai fazer com as conchas? Serão apenas adorno?"
E eu não soube responder. Porque eu não queria enfeitar nada.
Queria empilhar as conchas como se fossem muros.
Queria colá-las nas janelas pra ver se o sal do mundo parava de entrar.
Queria usá-las como escudo, como armadura, como tradução daquilo que sobrou em mim: uma casca dura por fora, um eco oco por dentro. Talvez um sambaqui na soleira — iria ficar bonito.
Um monte de conchas empilhadas, como quem constrói história com restos.
Um altar de coisas partidas que o mar devolveu sem culpa.
Que fique ali, na entrada, pra avisar: aqui mora alguém que já foi engolido e cuspido de volta.
“E se encontrar alguma pérola?”, me perguntaram, com aquele brilho nos olhos de quem ainda acredita que o mundo compensa.
Respirei fundo antes de responder, como quem busca dentro da própria ossatura uma verdade que não machuque tanto.
Se eu encontrar uma pérola, eu não a celebro.
Eu a acolho.
Porque a pérola é só mais um tipo de ferida cicatrizada com elegância.
Não é joia. É resposta.
Não é prêmio. É memória.
Vou guardá-la, sim.
Mas não em caixinha de veludo, nem sob vitrines.
Vou enterrá-la entre as conchas rachadas, onde ninguém note.
Porque não quero que a exceção me distraia da regra.
“E se você encontrar um dente de tubarão?”
Guardo também.
Não como troféu, mas como arma — é afiado. Pode cortar o que tenta me cercar.
Serve de arma, sim — mas também de lembrança.
Porque, em algum momento, mesmo cercada de predadores, eu já fui feliz.
E é bom lembrar que já sorri entre dentes perigosos.
Não vou pendurar no pescoço.
Vou esconder perto do peito.
Pra que, se um dia me faltarem forças,
eu me lembre que já fui ferida, mas também feroz.
“E se você encontrar uma garrafa com uma mensagem dentro?”
Respondo. Mesmo que a carta não tenha remetente.
Mesmo que as palavras estejam borradas pelo tempo e pela água.
Redargo, porque toda mensagem lançada ao mar carrega um desespero quieto,um pedido mudo de que alguém, em algum lugar, ouça.
Não importa se a carta veio de longe ou de um passado que já não me pertence.
Eu leio. Eu sinto.
E escrevo de volta, nem que seja só em pensamento.
Porque às vezes o que salva não é ser encontrado,
é saber que alguém respondeu,
mesmo sem saber exatamente o que foi dito.
Respondo, sim.
Porque eu também já joguei perguntas ao mar.
E sei como dói o silêncio.
Ainda tenho muita coisa pra fazer, não me incomode.
Já me perguntaram da pérola, do dente de tubarão, da garrafa com mensagem...
Como se eu tivesse tempo pra responder ao oceano inteiro.
Como se eu tivesse obrigação de dar sentido a cada pedaço que o mar regurgita.
Eu tô tentando não afundar — dá pra entender isso?
Tentando manter as mãos ocupadas, a cabeça fora d’água, o sal longe das feridas.
E vocês aí, querendo poesia de cada entulho que encontro.
Nem tudo é símbolo, às vezes é só lixo.
Nem tudo tem metáfora, às vezes só machuca.

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