imagem do filme:The Rainbow Thief- Alejandro Jodorowsky- 1990
Associações impertinentes: A bolha, a mácula e o cacto
Não precisa me olhar desse jeito, eu não roubei o arco-íris, e eu não tenho culpa de ser iridescente. Jamais tive qualquer inclinação cleptomaníaca. Brilhar não é crime, pelo menos não da última vez que conferi as leis da física. Se a luz resolve se despedaçar em mim, talvez seja só porque encontrou superfície. Não pedi pra refletir cor nenhuma, só estou aqui, existindo, do meu jeito translúcido demais pro conforto de uns. E sinceramente, não conheço nenhum código, nenhuma corte, nenhum veredito que declare isso um delito. Não lembro de ninguém ter escrito uma regra que proíba beleza acidental. Se incomoda, talvez seja porque revela demais, mesmo sem dizer uma palavra. E não estou sozinha nisso. Já viu as asas de uma Morpho azul? As penas de um pavão? O dorso metálico de um besouro, ou o interior de uma concha de nácar? Nenhum de nós roubou nada, apenas nascemos com esse dom inquietante de dobrar luz até ela confessar todas as cores. Se isso incomoda, talvez o problema não seja o reflexo, mas quem insiste em não querer ver.
Eu só flutuo, até encontrar com a rebutia. Meu túmulo é sarçoso, sua sarcose não é nada perto disso. E mesmo assim você se ofende com o que mal toca. Vive tentando podar o que cresce fora do seu vaso, como se espinho fosse ameaça, quando tudo o que faço é existir em silêncio, entre camadas de ar e tempo. Você esquece que não há pacto entre mim e a terra, apenas uma dança suspensa, leve demais para o seu peso.
Não sou sua ameaça. Sou sua lembrança. De quando tudo ainda era tênue e luminoso. De quando olhar não era julgar, e cor não era afronta. Eu reflito o que você esconde. E isso te fere mais do que qualquer espinho meu jamais poderia.
Não me tornei assim pra irritar. Me tornei assim porque fui deixada em paz por tempo suficiente. Cresci iridescente porque ninguém tentou me cobrir de opacidade. E agora você vem, com sua sarçose domesticada, reclama da intensidade alheia. Se sua estrutura não aguenta um reflexo, quem delimitou a forma e chamou o resto de falha? Você só reconhece o que cabe na sombra, mas esquece que até ela precisa de luz pra existir, por isso resiste ao que transgride seus limites.
Não tenho culpa se você ainda se sente sujo por dentro. Cada um lida com suas cicatrizes como pode. Eu lido com a minha efemeridade como se fosse um fogo delicado que precisa ser alimentado com cuidado, uma chama que sabe que pode se apagar a qualquer momento, mas que escolhe arder com intensidade enquanto dura.
Glossário:rebutia-espécie de cacto
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