imagem: Filme -O Livro de Cabeceira (Peter Greenaway, 1996)
Monólogo de uma verruga
Sou dessas que estouram. Não sei conter meus impulsos, vontade de ser vulcão, e, quando rompo, é porque já transbordei em silêncio por tempo demais. Pápula na escápula de um crápula, sentem mais asco de mim do que a dor que eu causei. Sou o erro que ninguém admite, a falha que insiste em existir, me espalhando em cada gesto, em cada palavra não dita. Fui nutrida pelo desprezo, e o calor é sufocante, e você ainda insiste em usar roupas pretas. Toda essa sua sudorese está me incomodando. Transbordava um lago de seu umbigo, seu corpo é estranho, pelos que se erguem e se curvam como raízes teimosas. Parece que estou em uma selva, um emaranhado caótico onde cada haste rebelde se inclina e se entrelaça sem direção.
O ar abafado faz tudo parecer mais denso, mais pegajoso. O suor escorre, formando trilhas úmidas que deslizam pela pele quente, carregando consigo o sal e o cansaço do dia. Aqui, no meio desse território selvagem, sou um ponto fixo, epílogo de algum texto que você não conseguiu terminar, como uma palavra solta que resiste a desaparecer, apesar das tentativas de ser apagada. Cada respiração sua reverbera, e eu sou arrastado, incomodado pelo ritmo frenético de suas pressas e impulsos. Seu corpo se move, mas em um padrão que não me escapa, como se cada passo fosse um capítulo novo que se repete incansavelmente, sem jamais alcançar um fim.
Uma fissura na superfície imperturbável de seu ser, resistindo aos toques distraídos, do prurido inconsequente, toda titilação sem titubear a rubefação. Parece que estou em Marte, um solo árido, inflamado, onde cada mínima perturbação acende um desconforto latente. Vermelho, latejante, pulsando em resposta ao menor estímulo, como se a própria atmosfera pesasse sobre mim, comprimindo, testando minha resistência. A fricção entre nós é inevitável. Sua pele me repele, seu toque me afronta, mas, mesmo assim, permaneço.
Poros que se abrem e fecham como pequenas bocas famintas. Confesso que tudo isso está me assustando muito. Seria melhor se fosse uma cratera na Lua, talvez Abulfeda, sua calma inerte, sem a constante tensão do corpo que se move e se agita. E a falta de gravidade... como seria libertador! Eu flutuaria, sem essa pressão incessante, sem o peso do toque, sem a força da fricção me arrastando para o limiar do desconforto. Não haveria mais o calor que me consome, o suor que me prende em cada curva de sua pele.
Eu seria apenas uma nódoa, um vestígio etéreo no vazio, sem essas pressões que se acumulam em cada respiração sua. Gasta todos os dias um quilo de maquiagem para me esconder, como se ninguém tivesse imperfeições, como se eu fosse um erro que não deveria ter acontecido, um detalhe fora de lugar na composição meticulosa da sua aparência. Todo este seu narcisismo me preocupa. Parece que sua obsessão com o reflexo te consome mais do que eu jamais poderia. Sua pele, esse palco onde desfilam suas inseguranças, não é tão imaculada quanto você quer acreditar.
Mas eu estou aqui, apesar dos disfarces, dos filtros, dos espelhos que você evita encarar sob luz forte. Sou ínfima, mas sou uma afronta, uma imperfeição que resiste, um lembrete incômodo de que seu controle tem limites.
Um comentário:
Muito bom, parabéns. Enquanto lemos vamos imaginando diversas coisas. Ao terminarmos, percebemos que o texto não pretende abordar somente verrugas mas uma abordagem existencial sobre incômodos e um questionamento do que seria a perfeição.
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