sexta-feira, 28 de fevereiro de 2025

Topografia do Desconforto

imagem: Filme -O Livro de Cabeceira (Peter Greenaway, 1996)


Monólogo de uma verruga

Sou dessas que estouram. Não sei conter meus impulsos, vontade de ser vulcão, e, quando rompo, é porque já transbordei em silêncio por tempo demais. Pápula na escápula de um crápula, sentem mais asco de mim do que a dor que eu causei. Sou o erro que ninguém admite, a falha que insiste em existir, me espalhando em cada gesto, em cada palavra não dita. Fui nutrida pelo desprezo, e o calor é sufocante, e você ainda insiste em usar roupas pretas. Toda essa sua sudorese está me incomodando. Transbordava um lago de seu umbigo, seu corpo é estranho, pelos que se erguem e se curvam como raízes teimosas. Parece que estou em uma selva, um emaranhado caótico onde cada haste rebelde se inclina e se entrelaça sem direção.
O ar abafado faz tudo parecer mais denso, mais pegajoso. O suor escorre, formando trilhas úmidas que deslizam pela pele quente, carregando consigo o sal e o cansaço do dia. Aqui, no meio desse território selvagem, sou um ponto fixo, epílogo de algum texto que você não conseguiu terminar, como uma palavra solta que resiste a desaparecer, apesar das tentativas de ser apagada. Cada respiração sua reverbera, e eu sou arrastado, incomodado pelo ritmo frenético de suas pressas e impulsos. Seu corpo se move, mas em um padrão que não me escapa, como se cada passo fosse um capítulo novo que se repete incansavelmente, sem jamais alcançar um fim.
Uma fissura na superfície imperturbável de seu ser, resistindo aos toques distraídos, do prurido inconsequente, toda titilação sem titubear a rubefação. Parece que estou em Marte, um solo árido, inflamado, onde cada mínima perturbação acende um desconforto latente. Vermelho, latejante, pulsando em resposta ao menor estímulo, como se a própria atmosfera pesasse sobre mim, comprimindo, testando minha resistência. A fricção entre nós é inevitável. Sua pele me repele, seu toque me afronta, mas, mesmo assim, permaneço.
Poros que se abrem e fecham como pequenas bocas famintas. Confesso que tudo isso está me assustando muito. Seria melhor se fosse uma cratera na Lua, talvez Abulfeda, sua calma inerte, sem a constante tensão do corpo que se move e se agita. E a falta de gravidade... como seria libertador! Eu flutuaria, sem essa pressão incessante, sem o peso do toque, sem a força da fricção me arrastando para o limiar do desconforto. Não haveria mais o calor que me consome, o suor que me prende em cada curva de sua pele.
Eu seria apenas uma nódoa, um vestígio etéreo no vazio, sem essas pressões que se acumulam em cada respiração sua. Gasta todos os dias um quilo de maquiagem para me esconder, como se ninguém tivesse imperfeições, como se eu fosse um erro que não deveria ter acontecido, um detalhe fora de lugar na composição meticulosa da sua aparência. Todo este seu narcisismo me preocupa. Parece que sua obsessão com o reflexo te consome mais do que eu jamais poderia. Sua pele, esse palco onde desfilam suas inseguranças, não é tão imaculada quanto você quer acreditar.
Mas eu estou aqui, apesar dos disfarces, dos filtros, dos espelhos que você evita encarar sob luz forte. Sou ínfima, mas sou uma afronta, uma imperfeição que resiste, um lembrete incômodo de que seu controle tem limites.

sábado, 15 de fevereiro de 2025

Lirismo esdrúxulo

 

Monólogo de um poste


A ptose pós-albaroo da cegonha, foi utilizada a tremonha, imprescindível para a criação de um deserto. A areia, antes contida nos alforjes do vento, verteu-se em sulcos profundos, cobrindo os vestígios do que um dia foi húmus fértil. O sol, cúmplice silente, consolidou a secura com sua língua de fogo, enquanto as sombras encurtavam-se até tornarem-se apenas memória. Vontade de ser pirâmide, toda langonha terá consequências: a gravidez era pré-eclâmpsia, no orto, só virão siriris em busca do calor. Rodopiam errantes, tangenciando o brilho efêmero, desenhando órbitas trêmulas no ar denso. Alguns ficam sem asas e acabam virando cupins.
Espalham-se pelo solo úmido, tateando frestas, buscando fendas onde o destino os acolha. Os que encontram abrigo somem na escuridão, fadados a erguer reinos ocultos sob os pés desatentos. Outros, desprotegidos, sucumbem ao roçar voraz das formigas, ao peso indiferente dos passos, ao tempo que tudo dissolve. O farfalhar mínimo se dissolve na penumbra, enquanto a brisa dispersa corpos exaustos. O ciclo persiste, indiferente às súplicas do instante. Piscava de propósito, em código morse. A transmissão de dados é importante quando todos estão vivendo em uma bolha de incoerências, onde as palavras perdem peso antes de alcançar um destinatário, chamamento para as Morsas. Não sei por que gostava delas, talvez pela quietude que se escondia na escuridão, pela maneira como surgiam e desapareciam sem avisar, ou simplesmente pela aliteração. Toda gambiarra que me envolve tinha algo de efêmero, como se fosse uma tentativa inútil de tecer significado na vastidão do nada. A precariedade das conexões se refletia nas pequenas faíscas que saltavam. O lirismo contemporâneo exigia isso, uma rendição ao invisível, um abandono do corpo à abstração. O genitor não era íntegro, nunca voltou para ver sua prole, e assim a ausência se espalhou como uma névoa, envolvendo tudo em sua indiferença. Não vou deixar mais ninguém se aproximar de mim, muito menos perros que me usam como mictório; serão todos eletrocutados. Protesto contra esta cidade apática, que mantém suas luzes acesas, mas apaga pessoas. Ruas ermas, calçadas trincadas, sombras projetadas sem dono. O asfalto, quente e impassível, engole passos hesitantes, afoga vozes antes que se tornem clamores. Só vou deixar colarem poesias em mim. Servirá de escudo contra a rigidez pétrea do tempo, contra a erosão da indiferença. Cada verso colado à pele será uma armadura de palavras, uma trincheira onde a memória resistirá ao esquecimento. Se a cidade apaga pessoas, então que ao menos os ecos fiquem gravados nas esquinas, nos postes, nos muros descascados.
Mas a tinta desbota, o papel se desfaz sob a chuva ácida das horas, e os olhos que leem seguem em frente, distraídos. Precisamos de algo mais resistente, como tatuagem, que chame a atenção do transeunte apressado, uma cicatriz que não se apaga, que grite em silêncio contra a dissolução. Frases esculpidas na carne do concreto, gravadas a ferro e ausência, talhadas no esquecimento para que a cidade se lembre do que insiste em soterrar.
No reflexo dos vidros embaçados, rostos se desmancham antes de se tornarem lembranças, borrões fugidios que o tempo devora sem remorso. Insisto em deixar marcas onde o apagamento é regra, cicatrizes que latejam sob a superfície endurecida das ruas. Se ninguém lê, que ao menos sintam, como se fosse um choque, um arrepio, um incômodo que os obrigue a parar. Agora vou ter o descanso merecido, mas há sempre um resquício de energia circulando, uma vibração imperceptível sustentando o que resta da memória. O silêncio não é absoluto—pelo contrário, carrega murmúrios invisíveis que se prendem à superfície áspera, ecos de passos esquecidos, frases interrompidas pelo ruído de motores ao longe. Nunca entendi o motivo de tanta pressa. Se tudo se repete, se os caminhos são sempre os mesmos, se os dias se sucedem sem novidade, por que a urgência? As horas se dobram sobre si mesmas, mas ninguém percebe. Correm, como se houvesse um destino inadiável, como se o tempo pudesse ser domado pela velocidade dos passos. Mas eu sei que não há chegada, apenas o desgaste, a erosão lenta dos que seguem sem notar o que deixam para trás. Coleciono os ecos que não encontram abrigo, cada despedida feita em silêncio.


terça-feira, 4 de fevereiro de 2025

Anagramas Marítimos

 
imagem: Rio Potomac, onde ocorreu uma colisão de um helicóptero e um avião no dia 29/01/2025


Agora que seu líder é um fascista fascíola, vai ser difícil o adejo; acostume-se com o redil e regule o fluxo de suas reações, talvez tenha fascipenes e todo fascínio aéreo vai se acabar. Exúvio? O radome não sente nenhum eflúvio, todo aquele perfume de alfazema que costumava acalmar os ânimos e trazer serenidade agora se perde na indiferença tecnológica, e longarinas dificultam sua fluidez, e o trem de pouso flutua de cabeça para baixo, preso no vórtice de uma espiral invertida. O horizonte artificial já não indica estabilidade, pois o giroscópio enlouqueceu, embriagado por turbulências morais. A fuselagem range com a tensão de parafusos gastos, como se protestasse contra a trajetória imposta. O manche que esquanche e se torne um apêndice inútil, uma engrenagem que ninguém obedece. O transponder pisca em uma cadência errática, atraindo os peixes mais curiosos, código cifrado, SOS disfarçado de normalidade, algoritmos repetindo mantras ocos. O painel, como um altar profano, onde a própria matéria hesita entre colapso e resistência, suspensa no limiar de uma rendição sem testemunhas. Onde a fronteira entre dentro e fora se dissolve, e o casco já não protege, apenas atrasa o abraço do abismo. O altímetro maltreito, sem ponteiros, marca uma distância que já não é mais mensurável. A deriva já não é escolha, mas sentença, traçada em rotas que não levam a lugar algum. O horizonte, se ainda existisse, estaria dissolvido em uma distopia onde a noção de altura e profundidade se tornou abstração. Turbinas em agonia contida, lâminas dilacerando, esgarçando sua própria estrutura, agora são túneis para zabucaís famintos, que espreitam o vulto metálico como um cardume hipnotizado pela estranha criatura que invade seu domínio, onde a água se infiltra lenta e inexorável, preenchendo os vazios deixados pelo ar que escapa em bolhas dispersas. Outros virão antes que você perceba, prejerebas no prejudicado ambiente, deslizando na neblina líquida como espectros que se alimentam da decadência, caindo sobre as feridas abertas da máquina, em busca de fragmentos que restaram das suas formas, antes vivas. O fluxo da água se intensifica, um murmúrio crescente que se mistura ao rangido da estrutura, onde o metal já não é mais aliado, mas um corpo que se derrete nas mãos do tempo, devorado por um oceano implacável. As fendas, agora mais profundas, permitem que as sombras se arrastem por dentro, invadindo os interiores, onde os sistemas de navegação piscam, as luzes vacilam em uma última tentativa de manter a ilusão de controle. Mas os prejuízos não são apenas estruturais, são existenciais. A caixa preta foi encontrada entre os destroços, coberta por fuligem e detritos, mas ainda intacta, um testemunho dos últimos momentos, pronta para revelar a verdade sepultada no caos. Isso tudo é fuselagem, isso não te concederá as asas que almejas, nem se sugar uma frota; a flotilha precisa de mais baunilha, a baritimia da barita.