sexta-feira, 14 de junho de 2024

Inspiração urbana


 

Monólogo de um bueiro



Passos que vêm e que vão. É uma vida de movimento, de mudança, de transformação. Passos que são rápidos, passos que são lentos, passos que são silenciosos, passos que são ruidosos. Aquele está com o cordão desamarrado, cuidado, é perigoso. Ontem foi um sofá, afinal precisava de mais conforto aqui, orto de ratos. E amanhã será a vez das cortinas, para dar aquele toque final de aconchego ao ambiente, e agora estou considerando uma nova mesa de centro para completar o espaço de convivência. Parece que só as panchloras estavam felizes, não terão uma vida fácil. Se serve de consolo, minha vida também não é fácil, os habitantes da superfície parecem não gostar de nós. Parecem nutrir um certo desprezo por nós, como se a existência deles dependesse da negação da nossa. Enquanto alguns nos veem como meros receptáculos de detritos e esgoto, há outros que reconhecem em mim um ecossistema próprio, um lugar onde a vida pulsa e se adapta de maneiras surpreendentes. Esta bulimia indômita me consome diariamente, criando desafios diários que são difíceis de superar. Ninguém virá trazer presentes, o fartum está cada vez mais insuportável, pode deixar por minha conta, a genitora afinal resolveu me nomear padrinho dos seus descendentes. Vou sorver alguma coisa de útil para sua prole, talvez um cobertor, aqui faz muito frio à noite, ou talvez resquícios de algum alimento do restaurante da esquina, que sempre desperdiça comida ao invés de doar aos necessitados. Amanhã  terá uma feira aqui, sempre rola alguma coisa, talvez um tomate, dá para fazer um encólpio com o licopeno que é muito bom para a saúde, pois é rico em antioxidantes e tem várias propriedades benéficas para sua prole. Falta muita empatia entre os humanos. É um problema que afeta a forma como nos relacionamos uns com os outros. Um dia vou regurgitar tudo o que descartam aqui e farei um grande estrago, um caos que ninguém poderá controlar. Será um despertar para a realidade, uma chamada de atenção para que as pessoas finalmente entendam as consequências de seus atos. E, talvez, seja tarde demais para mudar o curso, mas ao menos as pessoas saberão o que está acontecendo. Talvez isso possa ser o início de um novo caminho, uma oportunidade para que as pessoas sejam mais conscientes e responsáveis com o que fazem.

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