sexta-feira, 26 de fevereiro de 2021

Inspiração asséptica




ESCOVEIS

No auge da esquizofrenia comecei a escovar demais os dentes.


Nesses momentos podia ouvir uma melodia suave, ao longe. Não ouvia em momento algum do dia, somente enquanto escovava os dentes após o meu banho.

Olhava-me crua no espelho,
com a boca escancarada e espumenta,
suja e sangrenta,
ouvindo uma sinfonia tão deliciosa que tanto me emocionava;
nesse momento recordava tempos passados.

Ouvir tal coisa, em tal momento, fazia eu me sentir absurdamente louca,
e minimamente artista. Ou o oposto.

À medida que a música se intensificava, eu escovava.
As notas aumentavam em meus ouvidos,
e eu regia.

Escovei com força e cuspi sangue.
E quando cuspia, não escovava, e a música parava.
E quando escovava, tocava. E toquei; e continuei; e escovei.

Meus dentes alvos escovava por horas, até que meus braços se cansassem;
e fazia com excelência.
Chegava em meu ápice e a espuma gosmenta cuspia,
a língua com gosto acre escovava
e a pia sangrenta lavava.

No dia seguinte, após o banho, me olhava no espelho, e fazia de novo: compunha.

Escovava pelos operários brasileiros suados maltratados ralados desdentados operados nascidos e mortos,
pelos amores passados e pelos desacreditados,
pelos seres sem casa e sem escova.
Escovei palavras de baixo dizer e poupo pensar,
cuspi sentimentos meros e ocos.
Livrei-me do meu hálito putrefato.

Elogiavam meu sorriso todas as vezes que o viam, em dentes e palavras. Elogiavam-no todas as vezes que eu gritava as gargalhadas brilhantes que dava.
Eu cegava as pessoas.
À vizinhança eu bondiava; e com os dentes ela retribuía.

Hoje, sã, já não ouço mais a sinfonia.

A cegueira dos outros cedeu.

Após o meu banho, me olho no espelho, e

não escovo mais os dentes,
não escovo mais a língua,
não lavo mais a pia.

Eu só termino a poesia.

                   MADUSE



Fragmentos de Mim 


No banheiro, onde o vapor é denso 
Redijo uma poesia efêmera no espelho 
Ah, maldito espelho 
Pensa que minha boca é fojo 
E que os dentes são estalagmites 
Não serve como estalagem 
O arnês da arnela 
Não senti nojo 
Da saburra sob o dartro 
Não serve como pojo 
Porque me analisa com tanta veemência? 
Tudo isso é vontade de ser psiquiatra? 
Um dia crio coragem e te estruncho com o carpo 
Não vou recolher os cacos 
Alguém pode querer fazer um mosaico 
Remorso do torso 
A frenectomia 
Confesso a Katoptronofilia 
A acufagia 
A pia queria um pouco de utopia 
Cansou de tanto escarro 
O acrílico era idílico 
Será que com todo esse flúor indo para o esgoto 
Os ratos vão ficar mais fortes?

        Ednei Pereira Rodrigues


sometimes my arms bend back

I

Observar-se, após um banho quente, no espelho:

O espelho embaçado é bom porque ele traz uma mulher
⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀sem forma

e então finalmente não conseguimos dizer
⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀se ela era agradável
⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀ou se ela era louca

louca de verdade, uma mulher que

⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀tenta sair da camisa de força.

(às vezes, ela consegue)

II

o peito bate.

A palavra é engraçada porque
ㅤㅤㅤㅤㅤㅤse você a colocar numa balança

ela vai
ㅤㅤㅤㅤvariar de peso
ㅤㅤㅤㅤtodos os dias


Laura Redfern Navarro

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