terça-feira, 11 de dezembro de 2018

Claustrofobia



    A poesia vai acabar, os poetas 
vão ser colocados em lugares mais úteis. 
Por exemplo, observadores de pássaros 
(enquanto os pássaros não 
acabarem). Esta certeza tive-a hoje ao 
entrar numa repartição pública. 
Um senhor míope atendia devagar 
ao balcão; eu perguntei: «Que fez algum 
poeta por este senhor?»    E a pergunta 
afligiu-me tanto por dentro e por 
fora da cabeça que tive que voltar a ler 
toda a poesia desde o princípio do mundo. 
Uma pergunta numa cabeça. 
— Como uma coroa de espinhos: 
estão todos a ver onde o autor quer chegar? — 


Manuel António Pina,  "Ainda não é o Fim nem o Princípio do Mundo. Calma é Apenas um Pouco Tarde"



Adaptado


O bafo no vidro,significa que respira
Escrevo seu nome 
Coube na campânula
Vontade de ser sino para romper o silêncio
Nula qualquer tipo de manifestação
Até a ulna servir de estímulo
Até a unha provocar o pruído
Até a úngula reptar o ângulo
Um réptil tenta entrar mas não consegue
Mesmo assim é rúptil
A fim de evitar a ruptura
O buraco da letra O foi ocluso com ocna
A poesia agora faz a fotossíntese
A letra S ocozoal da o bote 
A poesia agora é ofídia
Fedia por causa da clausura
Quando resolveram abrir
Saiu lá de dentro um pássaro 
A poesia agora adeja. 

                  Ednei P.Rodrigues


DRUMMONDIANA
 
Estamos gastos sim estamos 
gastos
O dia já foi pisado como devia 
e de longe nosso coração 
piscou na lanterna sangüínea dos automóveis 
Agora os corredores nos deságuam 
neste grande estuário 
em que os sapatos esperam
para humildemente conduzir-nos a nossas casas
 
Em silêncio conversemos
Que fazer deste ser 
sem prumo 
despencado do extremo de um dia e 
que o sono não recolheu?
Não não indaguemos
Para que indagar matéria de silêncio 
Procurar a nenhuma razão que nos explique 
e suavemente nos envolva 
em suas turvas paredes protetoras
 
Nada de perguntas
A campânula rompeu-se
O instante nos ofusca
A quem sobra olhos resta ver 
um ser nu a vida pouca 
Só dentes e sapatos 
de volta para casa
Nem um passo à frente 
ou atrás
De pés firmes
o corpo oscilante 
neste suave embalo da mágoa 
descansemos.

Francisco Alvim

1968 - Sol dos cegos
  

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