terça-feira, 4 de julho de 2017

Ocupação Irregular


Ternura

Desvio dos teus ombros o lençol, 
que é feito de ternura amarrotada, 
da frescura que vem depois do sol, 
quando depois do sol não vem mais nada... 


Olho a roupa no chão: que tempestade! 

Há restos de ternura pelo meio, 

como vultos perdidos na cidade 

onde uma tempestade sobreveio... 



Começas a vestir-te, lentamente, 

e é ternura também que vou vestindo, 

para enfrentar lá fora aquela gente 

que da nossa ternura anda sorrindo... 



Mas ninguém sonha a pressa com que nós 

a despimos assim que estamos sós! 


David Mourão-Ferreira,"Infinito Pessoal"


Espaço Mínimo

Trem descarrilou sobre varal
O Imprevisto é necessário
Abuso do Desvio Abrupto 
Deflexão Deflora o vergel
O Verbo que verga é o verdugo
Esse dialeto éolico
A opinião do galerno
Cetim esvoaçante laça a nuvem marruá
O deleite do délavé quando leveda o vazio
Retalho de seda ata o artelho
Colcha para a concha
Vênus veste o veludo
Saruel abraça o vazio
Um sonho não cabe no soneto
A ectrima da métrica
Cabe no bolso, lobos 
No casaco do cassaco
Toda algidez na algibeira
Alfarja para o aljofre na aljafra
Fáretra para a letra que penetra pela uretra
Aljava como jazigo do epílogo.

Glossário:

vergel-pomar

galerno-vento brando

marruá-boi bravo
délave-Tecido cuja cor manchada imita um tecido desbotado
Saruel-calça
Alfarja-vaso de pedra
aljofre-gota de orvalho
aljafra-bolso
Fáretra-o mesmo que aljava(bolso)
Inocência


De um lado, a veste; o corpo, do outro lado,
Límpido, nu, intacto, sem defesa...
Mitológico rosto debruçado
Na noite que, por ele, fica acesa!

Se traz os lábios húmidos e lassos
É que a paixão sem mácula ainda o cega
E tatuou na curva de alvos braços
As sete letras da palavra: entrega.

Acre perfume o dessa flor agreste.
Álcool azul o desse verde vinho.
De um lado o corpo; do outro lado, a veste
Como luar deitado no caminho...

Em frente há um pinheiro cismador.
O rio corre, vagaroso ao fundo.
Na estrada ninguém passa... Ai! tanto amor
Sem culpa!
                      Ai! dos Poetas deste mundo!

Pedro Homem de Mello, "O Rapaz da Camisola Verde"

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