Catarse coletiva
Não fomos responsáveis pela morte do poeta, fizemos o possível para que ele se sentisse melhor, tentamos acalmar o peso que o mundo colocara em seus ombros, tentamos ser um porto seguro para a tempestade que ele carregava por dentro, envolvemos ele em silêncio e gentileza, como quem cuida de um pássaro ferido.
A cócedra para sua coccigotomia, mas ele já tinha usado toda artilharia contra si mesmo.
As palavras, antes refúgio, tornaram-se projéteis que ricocheteavam dentro da própria mente.
Nenhuma metáfora o protegia mais; até a beleza começara a feri-lo.
Havia nele uma lucidez que doía, uma clareza que desmanchava o sentido de continuar.
O tempo, ao redor, parecia hesitar, como se também não soubesse o que fazer com aquela presença tão cansada de existir.
Tentamos reconstruí-lo em silêncio, com gestos miúdos, quase invisíveis, mas ele já não habitava o mesmo ritmo que nós.
Os olhos permaneciam abertos, mas não viam — contemplavam.
Não o mundo, mas o vazio entre as coisas, o intervalo onde a vida se apoia para fingir que é sólida.
E então compreendemos que ele não queria ser salvo.
Era como assistir alguém lutando contra algo que não tinha forma.
Havia nele uma espécie de abismo silencioso, uma fenda que nenhuma palavra alcançava.
A sensação era de estar diante de um ser feito de ecos, tudo o que dizíamos voltava para nós vazio, sem aderir a parte alguma do que ele realmente sentia.
Os olhos dele não pediam auxílio; pediam sentido.
Havia um cansaço antigo, daqueles que nascem muito antes do corpo, um desgaste que parecia vir de vidas anteriores.
Em certos instantes, tínhamos a impressão de que ele enxergava além do que qualquer um é capaz de suportar.
Como se tivesse visto a estrutura das coisas — a natureza do sofrimento — e não pudesse mais voltar atrás.
Quando sua atenção se perdia no horizonte de dentro, sabíamos que estávamos diante de algo maior do que nossas mãos alcançavam.
Não se preocupe, vamos cuidar de sua platiedra, a platibanda serviu como abrigo improvisado, uma pequena varanda suspensa onde o vento quase não alcançava.
Depositamos ali o recipiente com o líquido adocicado e algumas pétalas frescas, criando um lugar seguro para que ela pudesse repousar sem ser perturbada por ninguém.
Ele observava tudo com um tipo de devoção que nos desarmava; parecia enxergar naquele gesto algo muito maior do que um simples cuidado com um ser frágil.
A mariposa tocou a superfície do algodão umedecido e permaneceu imóvel por alguns segundos, como se precisasse ouvir o mundo antes de decidir existir dentro dele.
Aquele instante não tinha urgência.
Enquanto ela explorava o pequeno espaço, percebemos que cada movimento dele ficava mais tranquilo, como se a vida daquela criatura lhe devolvesse alguma espécie de raiz.
Seu platiasmo pós platicefalia surgia sempre que tentava explicar o que sentia. A abertura exagerada da boca, aquele esforço estranho para articular as frases, o traía. Ele detestava a sensação de estar se oferecendo ao vazio, com a garganta exposta, como se a própria linguagem lhe arrancasse pedaços.
Permaneceu mudo, por vontade própria.
Ele piorou depois da morte da geléquia, nenhum de nós imaginava que aquela pequena viajante da penumbra ocuparia tanto espaço no coração dele. Não era apenas um inseto; havia nela algo que conectava o poeta a um ponto dentro de si que nem nós alcançávamos.
Era como se aquela vida minúscula segurasse os fios que ainda o mantinham inteiro, alguém apareceu com um platicerco, dizendo que talvez servisse.
Era um animal colorido, barulhento, inquieto; nada a ver com a delicadeza da pequena habitante da escuridão. Tentaram colocá-lo junto ao algodão umedecido, como se a simples presença de outra forma de vida resolvesse o vazio.
Ele observou o pássaro por alguns segundos.
Depois desviou o olhar, sem raiva, apenas cansado.
Percebemos que não se tratava de companhia, e sim de vínculo.
Certas presenças não podem ser trocadas, nem por algo maior, nem por algo mais raro. Algumas vidas são insubstituíveis exatamente por serem pequenas demais para caber em qualquer lógica.

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