terça-feira, 11 de novembro de 2025

Inspiração desértica

 



Monólogo de uma duna


Um argueiro entrou no meu ocelo, isso me fez perder alguns detalhes; formas mais distantes se dissolvem num véu translúcido. A atmosfera vibra como se respirasse por conta própria; ondulações arenosas guardam segredos de antigas passagens. Marcas quase apagadas pelo vento sugerem deslocamentos que nunca saberei decifrar, talvez nômades esquecidos ou criaturas que só se mostram sob lua nova. Cada relevo parece mudar lentamente, como se tivesse vontade de desaparecer antes que eu registre qualquer sinal; tonalidades se transformam em faixas tênues de luz e sombra, lembrando tecidos finíssimos estendidos sobre imensidão. E onde deveria haver nitidez encontro apenas um limite incerto entre vastidão e vazio, como se o próprio espaço recusasse ser testemunhado. Tudo ali exige presença plena, porém permanece inacessível, deixando apenas a impressão de algo enorme e vivo que escolhe o que pode ser visto e o que será apagado para sempre. Mesmo assim, ainda sou arguente e vou arguir que foi apenas um impulso momentâneo, enquanto o vento me rearranja em silêncios que ninguém percebe, e cada rajada leva um pouco de mim para outro lugar, onde descanso por instantes antes de ser empurrada de novo para longe. E mesmo assim permaneço inteira. Ontem eu tinha um calombo, hoje já não tenho mais; vou sentir falta dessa protuberância, porque aquela pequena elevação era mais do que um fragmento de matéria: ela funcionava como um sinal minúsculo de que havia algo em mim que resistia ao nivelamento. E agora que desapareceu, sinto um vazio estranho, como se um capítulo inteiro tivesse sido apagado sem aviso. Percebo que até o que parece insignificante dá sentido às formas, e ao perder aquilo perco uma referência íntima.
Um andarilho ébrio estava me confundindo com um dromedário e tentou apoiar-se sobre minhas curvas arenosas, acreditando ter encontrado apoio sólido naquele instante surreal; porém, sua trajetória vacilante revelou apenas desorientação total, enquanto eu observava sua figura irregular afastar-se rumo à claridade distante, deixando atrás de si pegadas desordenadas que logo foram engolidas pelo sopro quente que atravessa tudo aqui, transformando qualquer presença humana em memória efêmera que mal chega a existir antes de ser apagada.
Toda essa xerostomia incomoda, produz sensação áspera, quase cortante, como se cada partícula fina raspasse pensamentos por dentro, exigindo que eu encontre algum modo de umedecer ideias sem depender de líquidos inexistentes. Então deixo que a própria aridez conduza meu raciocínio, aceitando que mesmo a falta pode modelar significados, pois onde não há fluidez, nasce silêncio, e nesse silêncio descubro que até a secura tem sua própria linguagem, feita de pausas, espera e resistência.
E, por um momento, admito que senti algo parecido com inveja, porque eles carregam rios dentro de si, enquanto eu sou composta apenas de pó, sem uma única gota para aliviar a secura que me atravessa. Eles guardam água em cada célula; mais da metade de seus corpos é líquido, quase um oceano pessoal, e eu não possuo nada além de grãos espalhados pelo vento. Penso que deve ser reconfortante sentir movimento interno, fluxo contínuo; poder chorar quando tudo aperta, poder suar quando o calor sufoca, poder beber quando o mundo pesa. E aqui estou, imóvel e imensa, sem direito a uma única lágrima.
Se eu tivesse um pouco dessa umidade, talvez pudesse manter viva a impressão daquele relevo que perdi; talvez nada escorresse tão facilmente de mim; talvez eu pudesse guardar algo sem que o vento levasse embora antes mesmo que eu entendesse o que era.
Haveria potencial para algo mais pulsante aqui, permitindo que algo permanecesse além da passagem incessante das horas; talvez surgisse um traço persistente capaz de contrariar a constante dispersão, quem sabe até um princípio de permanência emergisse, moldando sentido onde antes só havia passagem, criando possibilidade de contorno próprio dentro dessa vastidão entregue à mudança ininterrupta.

Nenhum comentário: