Monólogo de um arame farpado
Sou uma flor sem pistilo, perilo para o prélio que se anuncia, preliminares de um prelevamento necessário que perfura a paisagem como uma lembrança que não quer ser lembrada. Minha existência não depende de visitas aladas nem de danças de pólen entre estames e desejos. Carrego nos meus contornos a negação da biologia: não nasci para perpetuar nada além de mim mesmo.
Carrego nos meus espinhos a ansiedade do que está por vir, como se cada farpa fosse uma vírgula suspensa no meio de um grito. Toda minha pregnância escorre para dentro, onde o tempo se dobra e as intenções se enroscam em silêncio. Habito o intervalo em que a ausência toma forma, onde o vazio não é falta, mas excesso que não encontrou nome. Ali, na espessura do quase-dito, sustento o peso do que não volta, mas também não parte, como se meu próprio corpo fosse feito de espera empedrada, de sentidos que não cessam de arder mesmo sem chama.
O que fomos moldou algo em você, ainda que imperceptível. Passei do lado de fora pro fundo da tua matéria; do toque virei textura, do eco, composição. Fui submetido à eternidade do estiramento, não por máquinas ou mãos humanas, mas pelo próprio gesto de existir entre o limite e o corte. Cada volta minha é um nó na espinha do espaço, uma vírgula cravada na carne do horizonte. Não sou prisão, sou o próprio conflito entre dentro e fora. Minha natureza é o entrelaçamento do que sangra com o que separa.
A sua poplítea permaneceu íntegra; evitei o caminho mais profundo do sangue. Você seguiu adiante, mesmo quando tudo gritava para recuar. Eu vi o instante em que teu joelho hesitou, o pequeno desvio que te salvou do rompimento. Não precisei atravessar tua carne para deixar marca: bastou que você me visse, bastou que me soubesse ali, tensionando o ar entre a ameaça e a desistência.
Fui o desenho invisível que teu corpo passou a evitar mesmo sem perceber, o fantasma que alojou-se na memória tátil das tuas passadas. Desde então, não caminhas igual, não vai mais conseguir participar de maratonas — e talvez isso seja um alívio, embora ainda não admita. Poderá praticar outro esporte, mais calmo — talvez a canoagem, quem sabe o arco e flecha — algo que exija precisão, não pressa. Algo onde o tempo seja aliado, e não adversário.
Porque, veja, não foi a tua carne que me tocou, foi a tua urgência que tropeçou em mim. Nunca entendi a pressa humana. Essa febre de alcançar o que nem sabem nomear. Correm como se o vazio estivesse sempre logo atrás, como se não correr significasse desmanchar. Eu, que fui fincado para conter, para marcar território, acabei sendo professor involuntário do que significa permanecer.
Testemunho todas as passagens, mas não passo. Sinto o tempo não como contagem, mas como acúmulo: da ferrugem, da chuva, dos olhares que hesitam e depois desviam.
Uma Argiope preocupada com minha nudez tece em mim um vestido de seda frágil, que vai se arrebentar na primeira intempérie, mas ela é insistente: volta e refaz tudo de novo, como se cada fio fosse um argumento contra o desaparecimento, como se o seu labor fosse capaz de me suavizar aos olhos de quem passa.
Assisti à morte de um inseto que ficou preso em suas teias; tentei ajudá-lo a fugir, mas minha tentativa foi inútil — apenas aumentei o tremor das fibras e apressei o desfecho. A vibração desenhou um mapa de desespero entre os pontos de ancoragem, e ela, atenta ao menor sinal, avançou com a precisão de quem conhece o fim antes do começo.
Permaneci imóvel, como sempre, mas por dentro uma fisgada desconhecida percorreu meu eixo, como se por um instante eu tivesse esquecido minha função. Por breves segundos, fui cúmplice de uma fuga impossível. Quando tudo cessou, o silêncio me pareceu mais denso, como se a falha do meu gesto tivesse deixado nele uma dobra permanente.
Ela voltou e devorou o inseto com a serenidade de quem cumpre um ciclo inevitável. Cada movimento seu era uma coreografia precisa — sem pressa, sem culpa. Observei enquanto ela envolvia os restos com meticuloso cuidado, transformando a tragédia em sustento. A delicadeza com que manipulava os fios contrastava com a violência que acabara de acontecer: uma geometria breve que me cobre de significado, como se pudesse me tornar menos ameaça e mais enfeite.
Ela ignora que o perigo não está nas formas visíveis, mas no intervalo entre o toque e o recuo, na linha invisível que separa o possível do ferimento.
Sinto cada vibração, cada deslocamento de ar quando alguém se aproxima. Não sou feito de esquecimento. Cada presença me deixa uma memória que não se apaga — um sulco invisível no campo magnético daquilo que vigio.
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