terça-feira, 23 de setembro de 2025

Lirismo esdrúxulo

                      


Amor, não me abandone. Se lágrimas de chorume não te comovem, se toda chorumela te incomoda, ainda assim, não vá. Fiquei chourém após a chuva ácida, e nada parecia capaz de me limpar, mas tenho muitas outras virtudes: a capacidade de me reinventar mesmo quando tudo se desfaz, a resiliência que me mantém de pé diante do desespero, a sinceridade que não teme mostrar minhas cicatrizes, e a lealdade que atravessa qualquer silêncio ou abandono. Fica comigo, mesmo que seja apenas como uma sombra, pois sem tua presença, todo o sentido se esvai, e eu temo que eu próprio me perca na ausência do que fomos.
Podemos deambular entre os resíduos, encontrando beleza onde outros só veriam lixo, sentindo a vida persistir em cada canto esquecido. Cada cheiro forte, cada fragmento caído ao chão é parte do nosso mundo, e ainda assim, conseguimos rir, sonhar e nos apoiar. As mãos sujas se entrelaçam, e mesmo o pó e a lama que grudam em nós não conseguem apagar o calor que carregamos. Encontramos pequenas faíscas de vida em tudo que foi descartado, e é nelas que nos agarramos: um pedaço de metal enferrujado pode ser um tesouro, uma garrafa quebrada pode refletir nossos olhos cansados. Não há promessa de conforto, mas há intimidade profunda, há a certeza silenciosa de que, enquanto estivermos lado a lado, nada totalmente nos destruirá.
Por mais hostis que sejam os cenários em que caímos, tua presença muda tudo: o que para muitos é apenas ruína e poeira, para mim se torna espaço suportável, até abrigo. Estar contigo faz qualquer ambiente parecer menos cruel, menos vazio, como se até a desolação ganhasse outra forma quando dividida entre nós dois.
Podemos vasculhar entre os restos, procurando algo que ainda tenha valor, pequenas peças que possam ser transformadas, reinventadas. Cada fragmento que encontramos é uma pequena vitória, uma prova de que ainda podemos criar, mesmo quando tudo ao redor parece desmoronar.
Veja aquele sofá descartado; só está um pouco rasgado, e ainda assim consegue sustentar corpos cansados, oferecendo abrigo silencioso entre ruínas e resíduos, como se cada fibra carregasse memórias de vidas passadas, lembrando que mesmo no que foi rejeitado existe valor, que mãos atentas podem transformar abandono em refúgio, desolação em calor, escuridão em presença, e que cada gesto, por mais simples, mantém acesa a chama da existência, criando sentido e conexão em meio ao caos que insiste em nos rodear.
O que mais incomoda é essa revoada de urubus passando rente, como se esperassem nossa queda, pairando acima como presságio constante, rondando com paciência cruel, alargando a sensação de vulnerabilidade, como se cada sombra projetada por suas asas fosse um lembrete de que o fim espreita, silencioso e inevitável, tentando nos convencer de que resistência é inútil, quando na verdade é a única arma que nos resta.
Sei que não estamos em Dubai ou nos Alpes Suíços, mas ainda existe dignidade mesmo aqui, entre poeira, fumaça e calor sufocante. Não precisamos de luxo para reconhecer que cada instante lado a lado carrega mais valor do que qualquer cenário de cartão-postal, porque o verdadeiro milagre é permanecer juntos apesar da hostilidade que nos cerca.
Sei que não posso oferecer muito conforto para você, mas posso entregar aquilo que resiste dentro de mim: a força que não se curva diante da miséria, a chama que insiste em permanecer acesa mesmo quando tudo em volta parece ruína. Não trago riquezas, nem promessas de caminhos fáceis, mas carrego o que o tempo não consegue corroer — lealdade, ternura e a coragem de seguir contigo até o limite. Posso não suavizar teus cansaços com luxo, mas posso dividi-los, carregar parte do peso e transformar solidão em presença. E, ainda que o mundo nos trate como descartáveis, dentro desse vínculo há algo incorruptível, uma verdade que nenhum abandono pode rasgar.

Nenhum comentário: