sábado, 21 de dezembro de 2024

Inspiração urbana: continuação imbrífera


 imagem: escritor Dalton Trevisan voltando para casa



Uma vela para Dario

Dalton Trevisan

Conto publicado no livro 33 Contos Escolhidos, Ed. Record
extraído do site: https://arararevista.com


Dario vem apressado, guarda-chuva no braço esquerdo. Assim que dobra a esquina, diminui o passo até parar, encosta-se a uma parede. Por ela escorrega, senta-se na calçada, ainda úmida de chuva. Descansa na pedra o cachimbo.
Dois ou três passantes à sua volta indagam se não está bem. Dario abre a boca, move os lábios, não se ouve resposta. O senhor gordo, de branco, diz que deve sofrer de ataque.
Ele reclina-se mais um pouco, estendido na calçada, e o cachimbo apagou. O rapaz de bigode pede aos outros se afastem e o deixem respirar. Abre-lhe o paletó, o colarinho, a gravata e a cinta. Quando lhe tiram os sapatos, Dario rouqueja feio, bolhas de espuma surgem no canto da boca.
Cada pessoa que chega ergue-se na ponta dos pés, não o pode ver. Os moradores da rua conversam de uma porta a outra, as crianças de pijama acodem à janela. O senhor gordo repete que Dario sentou-se na calçada, soprando a fumaça do cachimbo, encostava o guarda-chuva na parede. Ma não se vê guarda-chuva ou cachimbo a seu lado.
A velhinha de cabeça grisalha grita que ele está morrendo. Um grupo o arrasta para o táxi da esquina. Já no carro a metade do corpo, protesta o motorista: quem pagará a corrida? Concordam chamar a ambulância. Dario conduzido de volta e recostado à parede não tem os sapatos nem o alfinete de pérola na gravata.
Alguém informa da farmácia na outra rua. Não carregam Dario além da esquina; a farmácia no fim do quarteirão e, além do mais, muito peso. É largado na porta de uma peixaria. Enxame de moscas lhe cobrem o rosto, sem que façam um gesto para espantá-las.
Ocupado o café próximo pelas pessoas que apreciam o incidente e, agora, comendo e bebendo, gozam as delícias da noite. Dario em sossego e torto no degrau da peixaria, sem o relógio de pulso.
Um terceiro sugere lhe examinem os papéis, retirados com vários objetos de seus bolsos e alinhados sobre a camisa branca. Ficam sabendo do nome, idade, sinal de nascença. O endereço na carteira é de outra cidade.
Registra-se correria de uns duzentos curiosos que, a essa hora, ocupam toda a rua e as calçadas: é a polícia. O carro negro investe a multidão. Várias pessoas tropeçam no corpo de Dario, pisoteado dezessete vezes.
O guarda aproxima-se do cadáver, não pode identificá-lo os bolsos vazios. Resta na mão esquerda a aliança de ouro, que ele próprio quando vivo só destacava molhando no sabonete. A polícia decide chamar o rabecão.
A última boca repete. Ele morreu, ele morreu. A gente começa a se dispersar. Dario levou duas horas para morrer, ninguém acreditava estivesse no fim. Agora, aos que alcançam vê-lo, todo o ar de um defunto.
Um senhor piedoso dobra o paletó de Dario para lhe apoiar a cabeça. Cruza as mãos no peito. Não consegue fechar olho nem boca, onde a espuma sumiu. Apenas um homem morto e a multidão se espalha, as mesas do café ficam vazias. Na janela alguns moradores com almofadas para descansar os cotovelos.
Um menino de cor e descalço vem com uma vela, que acende ao lado do cadáver. Parece morto há muitos anos, quase o retrato de um morto desbotado pela chuva.
Fecham-se uma a uma as janelas. Três horas depois, lá está Dario à espera do rabecão. A cabeça agora na pedra, sem o paletó. E o dedo sem a aliança. O toco de vela apaga-se às primeiras gotas da chuva, que volta a cair.

***

Imbricado com a cidade, é como ver a memória se dissolver em fumaça. Cada segundo, agora suspenso, parece dilatar o vazio que se alarga ao redor do corpo. O céu, pesado e cinzento, sobrecarrega a atmosfera com sua umidade, enquanto os primeiros ecos do vento arrastam os últimos vestígios de calor. Nem sequer abaixaram suas pálpebras, esperaram que duas folhas caíssem sobre seus olhos, como se o tempo pudesse ser interrompido naquele breve instante de serenidade. O vento, suave e indiferente, sussurrava através das árvores, enquanto o mundo ao redor se desfazia em um emaranhado de sombras e luzes tênues. Tudo isso é medo da morte? Tudo isso é o eco de uma angústia existencial. Acho melhor já ir se acostumando com este seu túmulo ao relento, restos ao Sol sem se preocupar com a insolação. Alguém preocupado diz: “Se permanecer aí, o cheiro vai ficar insuportável”; urubus virão atrás da carniça, atraídos pela essência do que se perdeu, enquanto o vento frio começa a cortar a pele exposta. A cidade, distante e imutável, segue seu curso, ignorando a decadência ali presente. Um caniche famélico já se apoderou de seu fêmur, arrastando-o pelo chão em busca de algo mais, enquanto a noite se aproxima e as sombras engolem tudo ao redor, e a terra parece engolir o que resta, como se ansiando por um abalo sísmico, que seria sua redenção. Como se buscasse o caos, pois pensava que ele traria a liberdade. As luzes da cidade brilham como faróis indiferentes, ignorando o fim que se desenrola nas margens do esquecimento. Um regozijo efêmero paira no ar; seguem o fluxo como se nada tivesse acontecido, crianças que passam perto do cadáver, não sentem mais medo e fazem chacota, alguém afirma: “Deve ser alguma estátua gótica.” No horizonte, a escuridão toma forma, sem pressa de revelar sua face, enquanto os bípedes, em sua rotina diária, parecem presos a uma existência que nada questiona.

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