ESCOVEIS
No auge da esquizofrenia comecei a escovar demais os dentes.
Nesses momentos podia ouvir uma melodia suave, ao longe. Não ouvia em momento algum do dia, somente enquanto escovava os dentes após o meu banho.
Olhava-me crua no espelho,
com a boca escancarada e espumenta,
suja e sangrenta,
ouvindo uma sinfonia tão deliciosa que tanto me emocionava;
nesse momento recordava tempos passados.
Ouvir tal coisa, em tal momento, fazia eu me sentir absurdamente louca,
e minimamente artista. Ou o oposto.
À medida que a música se intensificava, eu escovava.
As notas aumentavam em meus ouvidos,
e eu regia.
Escovei com força e cuspi sangue.
E quando cuspia, não escovava, e a música parava.
E quando escovava, tocava. E toquei; e continuei; e escovei.
Meus dentes alvos escovava por horas, até que meus braços se cansassem;
e fazia com excelência.
Chegava em meu ápice e a espuma gosmenta cuspia,
a língua com gosto acre escovava
e a pia sangrenta lavava.
No dia seguinte, após o banho, me olhava no espelho, e fazia de novo: compunha.
Escovava pelos operários brasileiros suados maltratados ralados desdentados operados nascidos e mortos,
pelos amores passados e pelos desacreditados,
pelos seres sem casa e sem escova.
Escovei palavras de baixo dizer e poupo pensar,
cuspi sentimentos meros e ocos.
Livrei-me do meu hálito putrefato.
Elogiavam meu sorriso todas as vezes que o viam, em dentes e palavras. Elogiavam-no todas as vezes que eu gritava as gargalhadas brilhantes que dava.
Eu cegava as pessoas.
À vizinhança eu bondiava; e com os dentes ela retribuía.
Hoje, sã, já não ouço mais a sinfonia.
A cegueira dos outros cedeu.
Após o meu banho, me olho no espelho, e
não escovo mais os dentes,
não escovo mais a língua,
não lavo mais a pia.
Eu só termino a poesia.
MADUSE
Fragmentos de Mim
No banheiro, onde o vapor é denso
Redijo uma poesia efêmera no espelho
Ah, maldito espelho
Pensa que minha boca é fojo
E que os dentes são estalagmites
Não serve como estalagem
O arnês da arnela
Não senti nojo
Da saburra sob o dartro
Não serve como pojo
Porque me analisa com tanta veemência?
Tudo isso é vontade de ser psiquiatra?
Um dia crio coragem e te estruncho com o carpo
Não vou recolher os cacos
Alguém pode querer fazer um mosaico
Remorso do torso
A frenectomia
Confesso a Katoptronofilia
A acufagia
A pia queria um pouco de utopia
Cansou de tanto escarro
O acrílico era idílico
Será que com todo esse flúor indo para o esgoto
Os ratos vão ficar mais fortes?
Ednei Pereira Rodrigues
I
Observar-se, após um banho quente, no espelho:
O espelho embaçado é bom porque ele traz uma mulher
⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀sem forma
e então finalmente não conseguimos dizer
⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀se ela era agradável
⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀ou se ela era louca
louca de verdade, uma mulher que
⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀tenta sair da camisa de força.
(às vezes, ela consegue)
II
o peito bate.
A palavra é engraçada porque
ㅤㅤㅤㅤㅤㅤse você a colocar numa balança
ela vai
ㅤㅤㅤㅤvariar de peso
ㅤㅤㅤㅤtodos os dias
Laura Redfern Navarro