sábado, 31 de outubro de 2015

Marítimo

  
JOGOS DE SOMBRAS 
Hermes Floro de Araújo

Sempre que me procuro e não me encontro em mim,
pois há pedaços do meu ser que andam dispersos
nas sombras do jardim,
nos silêncios da noite,
nas músicas do mar,
e sinto os olhos, sob as pálpebras, imersos
nesta serena unção crepuscular
que lhes prolonga o trágico tresnoite
da vigília sem fim,
abro meu coração, como um jardim,
e desfolho a corola dos meus versos,
faz-me lembrar a alma que esteve em mim,
e que, um dia, perdi e vivo a procurar
nos silêncios da noite,
nas sombras do jardim,
na música do mar...

esculturas submersas no Mar de Caribe

tem um mar calmo
nos meus sapatos
com sola de borracha
afundo os pés cansados
enquanto caminho no fundo
das avenidas
de uma cidade submersa
Carlos Assis




 Atlântida
Ednei Pereira Rodrigues

Onda dona do nado
Só é permitido à voga da vogal no Volga
A chefia ríspida do Chenab
A peçonha do Pechora provoca a paresia
Severo Sepik me separa da sereia
A pungência do Pungá como um punhal
Faz a desidratação atravês do dácrio
Desfaz o Accona aconchegante que criei
Veneziana dispensa os calanques e derruba as gôndolas
Aclama um dilúvio dilacerante
Aderiria a diarréia se não fosse o abjeto
Néctico em bolha da ebulição
Deixo minha caspa no Mar Cáspio
A saliente saliva emerge à tona
O supérfluo na superfície do suplício
O suspeito suor suficiente do Tejo
O mediterrâneo mede a medula
O Vístula vistoso atravês da fístula
A essência do Essequibo transborda os poros
A ruptura com o Rupununi deixa-me único
O Escodra que escorre deságua no vazio.


 Glossário:
Volga:O rio Volga, é, com os seus 3688 km, o mais longo rio da Europa, e também o maior do continente em caudal e na área de bacia hidrográfica.
Chenab:  rio Chenab é um longo rio que percorre o subcontinente Indiano, sendo um dos cinco grandes cursos de água que fluem pelo Panjabe, no noroeste da Índia e nordeste do Paquistão.
Pechora: O rio Pechora é um rio do noroeste da Rússia. 
Sepik: Rio Sepik é um rio do nordeste da Nova Guiné com cerca de 1.120 km.
Pungá: O lago Pungá é um lago brasileiro que banha o
estado do Amazonas, e banha o município de Juruácarece 
Vístula:O Vístula é o mais longo rio da Polônia. Tem 1.047 km e sua bacia hidrográfica banha cerca de 192 mil km², ou quase dois terços da superfície da Polônia.
Essequibo: O rio Essequibo é um curso d'água guianense que nasce nas serra Acaraí, fronteira com o Brasil.
Rupununi: Rupununi é uma região na Guiana, América do Sul, constituída por savanas, na sua maior parte, e por floresta tropical. A região é cortada pelo Rio Rupununi.
Escodra:Escodra, é o maior lago dos Bálcãs, localizado na fronteira Albânia-Montenegro.
dácrio:lágrima
Accona: O Deserto Accona é uma área semi-árida, na Toscana, Itália, no
centro da chamada Creta Senesi, perto da comuna de Asciano.
calanques:Um calanque é um acidente geográfico encontrado no Mar Mediterrâneo, que se apresenta sob a forma de uma angra, enseada ou baía com lados escarpados, composta por estratos de calcário, dolomita ou outros minerais carbonatos. Wikipédia
 
 
 
O Dilúvio
Eugénio de Castro, in 'Saudades do Céu'


Há muitos dias já, há já bem longas noites
que o estalar dos vulcões e o atroar das torrentes
ribombam com furor, quais rábidos açoites,
ao crebro rutilar dos coriscos ardentes.

Pradarias, vergéis, hortos, vinhedos, matos,
tudo desapar'ceu ao rude desabar
das constantes, hostis, raivosas cataratas,
que fizeram da Terra um grande e torvo mar.

À flor do torvo mar, verde como as gangrenas,
onde homens e leões bóiam agonizantes,
imprecando com fúria e angústia, erguem-se apenas,
quais monstros colossais, as montanhas gigantes.

É aí que, ululando, os homens como as feras
refugiar-se vão em trágicos cardumes,
O mar sobe, o mar cresce. e os homens e as panteras,
crianças e reptis caminham para os cumes.

Os fortes, sem haver piedade que os sujeite,
arremessam ao chão pobres velhos cansados.
e as mães largam. cruéis, os filhinhos de leite,
que os que seguem depois pisam, alucinados.

Um sinistro pavor; crescente e sufocante,
desnorteia, asfixia a turba pertinaz:
ouvem-se urros de dor, e os que vão adiante
lançam pedras brutais aos que ficam pra trás.

Raivoso, o touro estripa os míseros humanos
que o estorvam, ao correr em fuga desnorteada,
e pelo ar tenebroso as águias e os milhanos
fogem, com vivo horror, daquela estropeada.

Cresce a treva infernal nos cavos horizontes;
o oceano sobe e muge em raivas cavernosas,
e as ondas, a trepar pelos visos dos montes,
fazem de cada vez cem vítimas chorosas!

Os negros vagalhões, nos bosques mais cimeiros.
silvam e marram já, em golpes iracundos;
resplendem raios mil em rútilos chuveiros,
e os corvos, a grasnar, desolham moribundos.

Blasfémias, maldições elevam-se à porfia;
fustigado plo raio, aumenta o furacão;
cada ruga do mar acusa uma agonia,
cada bolha, ao estalar, solta uma imprecação.

Cresce no mar, sobe o mar... e traga, rudemente.
da mais alta montanha o píncaro nevado.
e um tremendo trovão aplaude a vaga arlente,
que envolve, ao despenhar-se, o último condenado.

Cresce o mar, sobe o mar, que já topeta os céus:
e, levada plo fero e desabrido norte,
sua espuma, a ferver, molha o rosto de Deus,
que lhe encontra um sabor nauseabundo de morte...

Cresce o mar, sobe o mar... Cada vaga é uma torre!
No céu, o próprio Deus melancólico pasma...
E, pelos vagalhões acastelados, corre
a Arca de Noé, qual navio-fantasma...

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