terça-feira, 15 de abril de 2025

Inspiração vítrea


Monólogo de uma ampulheta



Barchan escorrendo em meu âmago, cada grão revela um sussurro do tempo que se esvai em silêncio. Cada instante desvanecido se transforma em um eco que se dispersa pelo infinito, carregando consigo as marcas de momentos que jamais retornarão.
Enquanto as sombras do passado tentam reavivar memórias há muito adormecidas, sinto o peso suave dos instantes esquecidos. Não estou sendo saudosista, mas eles eram mais felizes e não sabiam. Mesmo com a pouca tecnologia, o encanto da simplicidade fazia com que cada encontro e cada gesto tivessem um brilho próprio. Pode me chamar de ludita: encontro refúgio na ternura de uma época em que o toque e o olhar diziam mais do que palavras digitais.
Havia magia na demora dos acasos e na riqueza dos silêncios compartilhados, onde cada riso e cada lágrima formavam a tessitura de uma existência plena. Talvez seja tolice, mas prefiro abraçar a memória dos instantes que se estendiam, longos e intensos, onde a alma se revelava sem artifícios. Tento abafar a barafunda externa. Preciso de silêncio para escutar o que se perdeu entre os excessos.
O tempo ressoa em ritmos esquecidos, sussurra verdades que poucos querem ouvir. Há algo essencial na espera, na contemplação do imperceptível, no intervalo entre o que foi e o que será. Sigo resistindo à vertigem dos dias rápidos, aos sentidos anestesiados, às conexões que não tocam.
Caminho sobre lembranças que se desfazem como espuma ao toque, mas que ainda guardam o peso de tudo o que já foi vivido. Contudo, esta baragnose predominante infiltra-se em meus pensamentos vítreos, refletindo distorções de uma aridez íntima. A rispidez implacável corrói convicções e esculpe labirintos de dúvidas.
Meus olhos translúcidos jamais contemplaram o mar, só conhecem miragens, ecos de águas que nunca tocaram. A torneira pingando na pia marca o compasso de um tempo implacável, cada gota, um lembrete de ciclos intermináveis. Sinto sede, mas não de água, é um anseio que escapa à compreensão, um vazio profundo que nem o fluxo incessante preenche.
O som ritmado ecoa como uma memória persistente, desenhando círculos na superfície imóvel, enquanto a secura invade, convertendo pensamentos em poeira. Mudei desde ontem, hoje pareço o Atacama. O bafo no vidro não é respiração, é a mudança brusca de temperatura. Hoje vai ser um daqueles dias. As pessoas estão cada vez mais preocupadas com coisas fúteis, e as inquietações se multiplicam, sufocadas por ruídos sem substância.
Olhares vazios percorrem telas brilhantes, buscando um sentido que se dissolve antes mesmo de ser compreendido. O que antes era encontro, agora é dispersão. O que antes era troca, agora é consumo. Cada gesto automatizado alimenta um ciclo que não cessa, um redemoinho de urgências que nada significam.
Observo a pressa, a ânsia por algo que nunca chega. Palavras ditas sem serem sentidas. Risos que não encontram eco no peito. Promessas feitas apenas para preencher o silêncio. Agradeço à criança que me quebrou, agora sou uma campânula. Tudo se esvai antes de ser sentido, como se houvesse medo daquilo que permanece.
Mas eu, na minha transparência imperfeita, me mantenho imóvel, escutando as vibrações do que persiste, do que ainda pulsa sob a superfície.

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