sexta-feira, 30 de agosto de 2024

Desdobramentos vertiginosos

 

A Vertigem do Caos

um estranho entre estranhos, nômade
entre escombros, procuro sem
procurar, um não-lugar, o ventre
de látex de uma replicante quase
humana, as ruínas enfim apaziguadas
da bombonera, as águas que refluem
pra dentro da baía de todos
os infernos, ali, onde a eternidade
são os dentes de estanho do último sol
mastigando oceanos como fatias
de pizza, lançadas ao ocaso
do fundo de um naufrágio, ante
a dança misteriosa de um feiticeiro cherokee

                                                     Ademir Assunção

 

Não vai conseguir fazer chover com isso
Talvez se colocar algumas beldades dançando cancan
Cancaborrada na matiz, não vai espantar a matilha
Até a noite, o sangue vai ser diluído
Pigmeus precisam de pigmentos
Não vai alcançar nenhum resultado com isso
Talvez a coreografia esteja errada
Retese mais o braço, espiche o godemiche
Envolto na poeira, esqueceu que tinha corpo
Talvez seja corêmio
Proêmio de algo hermético
Corpúsculo disforme para o opúsculo
Não precisa mais de músculo
Agora que é crepúsculo
Côncavo e convexo grumo
Uma boa mistura para húmus
Não culpe o torso pelo cansaço iminente
Os mamilos marcescíveis que não alimentaram a prole órfã do ocapi
A única certeza que temos é a morte.

sábado, 24 de agosto de 2024

Exegeses Incongruentes


Solidão

Infusão de baixo teor alcoólico resultante da fermentação do silêncio, onde cada bolha traz à tona ecos do passado e deixa um gosto acerbo de uma ausência prolongada. Convém ser degustada em momentos de introspecção, quando o mundo lá fora se dissolve na quietude interior. Pode causar alucinações emocionais e psicológicas, transportando o indivíduo a paisagens mentais distantes e às vezes surreais, onde as fronteiras entre realidade e imaginação se tornam tênues.

 

Frustração



Fruto abrolhado com polpa rugosa, de sabor agridoce, que se desfaz ao toque, deixando apenas a promessa de doçura e a sensação de algo que nunca amadurece por completo. É para ser ingerido com a consciência de que não saciará, mas ensinará sobre a impermanência das coisas, sobre o sabor da ausência e a aceitação de que nem tudo que é desejado se transforma em plenitude.


Angústia



Prótese por inspiração inexpugnável (substantivo feminino – Fonética)Perrexil amplamente apreciado na culinária brasileira, onde cada prato carrega o peso silencioso de memórias e ausências. Sensação densa e persistente, semelhante a uma massa espessa que se forma no peito, feita de expectativas não atendidas e incertezas acumuladas, mistura-se com o amargo das experiências, moldando-se à forma que a mente lhe dá, podendo ser digerida lentamente ou permanecer, enrijecida, em fatias de inquietude.


Girafa



Guindaste onírico usado para erigir poemas ou outras obras literárias, ela desempenha uma função importante, ajudando a levantar e posicionar materiais pesados, metáforas & devaneios. Suas longas pernas e pescoço permitem alcançar alturas elevadas onde as ideias se tornam visíveis e tangíveis, entrelaçando-se com nuvens & estrelas. Sem predadores ela caminha livremente nas brumas do inconsciente.


Metáfora



Indumentária que a poesia veste contra as vicissitudes, pelta que a protege contra as asperezas do cotidiano. Quando ocorre a ecdise e tudo fica exposto, segredos são revelados e o que antes estava hermético se desdobra em discernimento. As palavras, antes seladas, agora se abrem como flores ao sol, oferecendo nuances e profundidades e quando o vulnerável se revela em sua essência.

sexta-feira, 9 de agosto de 2024

Inspiração acuminada


Monólogo de uma Estalactite
 

O canino não reteve a presa, era apenas uma crinia tinnula que se esquivou com agilidade. “Você não precisa disso”, alguém disse, colocando em dúvida minha existência. Então, todo aquele período de desenvolvimento foi em vão? A dúvida pairava no ar, questionando se o esforço investido realmente havia contribuído para algo significativo ou se tudo havia sido um desperdício. Talvez toda essa escuridão tenha me confundido. Tentei me concentrar, afastar os pensamentos que me puxavam para um abismo de incertezas, mas era difícil. O medo de que tudo o que fizera até agora não passasse de um erro ganhava força, e a escuridão ao meu redor parecia se fechar ainda mais, tornando cada passo à frente mais pesado e incerto. Leva-me a questionar o valor e o propósito de cada passo dado em meu caminho. Agora sei por que minha tentativa de gritar resulta em silêncio. O vazio do eco não é apenas a falta de som, mas uma reflexão sobre como, em meio à vastidão da existência, nossas ações podem parecer insignificantes, como se a própria essência do nosso ser estivesse sendo absorvida pela escuridão que nos rodeia. Sempre achei que meu problema era a aglossia, a incapacidade de articular minhas emoções e pensamentos em palavras que fizessem sentido. Uma boca que nunca vai ser beijada guarda anseios profundos. Nunca acreditei em qualquer idílio; talvez isso tenha me deixado mais ríspida e cética em relação aos sentimentos que os outros dizem sentir. Há uma proteção construída ao redor do coração, uma barreira que impede a vulnerabilidade, mas também a plena felicidade. Talvez, nessa defesa contra o sofrimento, eu tenha me isolado de momentos de verdadeira conexão, perdendo a chance de experimentar algo genuíno e transformador. Mas, ao mergulhar mais fundo nessa escuridão, percebo que a verdadeira questão não reside na falta de expressão, mas na luta interna entre o que sinto e o que consigo comunicar. O silêncio, que antes me parecia uma prisão, agora se transforma em um espaço de contemplação, onde posso explorar as nuances do que sou. Ontem dancei com sombras, e hoje, o que resta é uma sensação de estar perdida em um labirinto de incertezas, onde cada movimento parece ser uma busca por algo que permanece intangível e distante. Pelo menos, nunca terei cáries, e a arnela não causará desconforto, pois está ainda em formação. Vou ter que planger muito, motivos não faltam, esforçando-me para moldar algo significativo em meio a essa escuridão persistente, onde até mesmo a menor certeza parece um farol distante em um mar de dúvidas. É uma pequena compensação, talvez, para a imensidão de dúvidas e a sensação de futilidade que agora preenche meu ser, lembrando-me de que, mesmo nas menores certezas, pode haver algum alívio.