quinta-feira, 4 de junho de 2020

Arquitetura inventada



ARQUITETURA
com o pensamento em Franz
Kafka
Encapsular o inferno
numa tarde sem mais
de Praga. No entanto
era ele quem deslocava
a cidade para a parede
incalculável de seus olhos.
Auscultar o pântano
de sua razão intranquila
até que nenhuma ponte
se arme para nossa passagem.
Inventar entradas falsas
(entrar sem sequer ter saído)
traços pontilhados, estradas.
Procurar praças estações catedrais
como um cão sem faro.
Como um cão fora de si.
Alcançar o fio cego do horizonte
por algum túnel longíquo
incomunicável; abastecer
o teto mais que o chão.
                                  Laura Liuzzi
Infiltrações

O teto é tétrico
O lustre é meu Sol domado pelo interruptor
Aqui não é Lapônia
Mas tem Sol da meia-noite


O teto tentou imitar Tétis
Quando chove muito
Formam-se goteiras e pinga
A torneira faz plágio

O teto nunca será Tétio
Sem tetimixira
Tentou imitar o aquário
Ictologia inventada

O teto nunca será o limite
E nem preciso de tetrilo para destruí-lo
A metáfora e a tetriz que impulsiona tudo
Daqui da pra ver Ástrapa

O teto é tretonal
Cada nicho que se abre
É uma passagem para minha fuga
Pode até ser fugaz

O teto serve de ninho
Onde a argiope faz sua teia
Para capturar o pássalo
Pode até ser pássaro

O teto não é totalmente inútil
É preciso valorizar o intrínseco das coisas
Mesmo que seja supérfluo
Existe um pouco de flúor na palavra.

              Ednei Pereira Rodrigues



AUTORRETRATO


Como pode água nascer
de pedra
como pode, posso eu
também ter matéria
grave e intransponível
conjugada a esta outra
transparente, irrepresável.
Basta um olhar à fotografia –
o bebê no colo
o papel envelhecido.
Ao mesmo tempo que um avança
somando anos
o outro recua, mais antigo.
Quando as tardes pareciam
maiores
quando o fim do dia
era o fim do dia
quando tatuagens não eram
para sempre.
O tapete da sala era branco
e peludo, parecia um bicho
depois da ração diária.
O sol entrava geométrico
e, espremendo-se entre as grades
desenhava escarpas
onde eu me deitava
junto ao bicho.
Eu fechava os olhos
para ver as cores no escuro.
Só o que morria era inseto.
Sorrir nunca foi fácil.
Cresço com a boca miúda
e ainda não gosto de piadas.
Conservo a interrogação
quando de frente ao espelho:
como pode ser tão diferente
o frontal do perfil?
E me pergunto, desde lá
se todos enxergamos as mesmas coisas
se a língua não é tão só
um mesmo código para coisas distintas
se entre mim e você
não há um abismo sem solução.
O que sei é o que não sei
sobre projetos de futuro.
E mesmo assim escrevo cartas
(funcionam melhor que espelhos)
para meu próprio endereço.
Me respondo como se já tivesse
arquivado toda a memória
e pudesse confortar
confrontar o porvir.
Quando escrevo me passo a limpo
sem riscar as imperfeições.
A infância ainda gravita
em mim. Não só
a minha, mas outras
que vêm com músicas
sub-reptícias, por um atalho
por onde atravessam
com a velocidade
incalculável
do tempo.
Dar nome às coisas:
primeiro passo torto
até que se deseje
as coisas puras
sem auxílio de som —
a rosa única
a pedra que se sabe pedra.
Segundo passo, falho:
inominar.
Nos retratos guardamos nos olhos
o vidro dos olhos do gato
a cama ainda desfeita
a última tempestade
e o escuro do que virá.
[Colher nas mãos o que
das mesmas mãos se extinguiu:
pedra papel tesoura.]

                       Laura Liuzzi 

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