sábado, 21 de abril de 2018

Ilusão de óptica


Duplo


Olho-me adentro sem cessar e no silêncio
e na penumbra de mim mesmo não me exprimo
nesse mim que se esconde e se retrai no vago
espaço de urna célula e vai construindo
outro mim de mim, disposto em gêmeos compassos,
e não aparece ao olho, ao espelho, à imagem
casualmente em máscara, fechado à curio-
sidade de meus olhos lacerados, cegos
de tanta luz enganosa, nem se derrama
sobre a superfície polida e indiferente,
enquanto cresce em mim a presença de estranho
ser não eu, de irrevelada e própria pessoa,
que domina esse meu corpo, casca de angústia
e contradições simétricas envolventes,
e me explora e me assimila; mas sou eu só
a me percorrer e nele me vejo e sinto,
como de dois corpos iguais matéria viva,
e me faço e refaço e me desfaço sempre
e recomeço e junto a mim eu mesmo, gêmeo,
nada acabo e tudo abandono, dividido
entre mim e mim na batalha interminável...


Fernando Py, 'Vozes do Corpo'


Só se for


Olhando assim de longe
Parece algo valgo
E não adianta culpar a inércia
Depois do conluio
O inóculo da solidão


Olhando assim de perto
Assemelhável ao ímpeto
Sim,teve assédio com o nistagmo
Algo ciliforme se forma
Outra floresta para desbravar
Mas depois de tantos anos de solidão
Nem foi percebido
É uma asserção


Assim que descobriram o motivo
Foi preciso reduzir a assimetria
Conteúdo assimilável com a solidão
Não assina no final
Anônimo para a Anopsia
Ainda falta muito para o fim do ano
Ainda falta muito para ser algo
A Heautognose
Ainda falta muito para ti ver

Uma hebdômada secular.


EPR

terça-feira, 10 de abril de 2018

A espoliação do espôndilo

Codicilo

Alberto Pucheu


Emito gritos de socorro, acaricio cabeças pendidas, festejo a entrada da primavera e pereço na calçada mais próxima.
A balbúrdia nos ouvidos da cidade,
a paisagem nas pernas dos caminhos,
o acontecimento que, à minha revelia, me incrementa,
rearranjam os meandros de meu corpo. Despenco, a cada dia, de mim mesmo, renasço do outro lado das alturas: muito mais oceano do que braços, mais trânsito do que pele, mais ruídos do que cérebro. Não tenho por lugar
turísticos belvederes, mas o emaranhado das ruas populosas
e recantos por onde encontro o esquecimento.
Sinto o cheiro espesso da gasolina escorregando por entre as veias, sinto seu gosto no copo do qual beberei, sinto o ritmo derrapante das inquietudes.
Como a leitora cobrindo com esparadrapo frases de um livro,
como um homem amontoado no meio da multidão,

sigo, arrastado pela força que leva as aves a emigrarem1.

E não desiste, a sede: como o mar, imorredoura.

P.S. - Alguém que não foi nada na vida me disse que tudo valeu a pena. 

1Verso de Fernando Ferreira de Loanda, em Kuala Lumpur.








Codicilo


Vísceras expostas
Em frente a sua casa
Não se esquecerá de mim!
O solear para a soledade
Columela para o silêncio
Na soleira a soldra
Soldar o dorsal com a aduela
A espoliação do espôndilo
Não justifica o solecismo de tudo
Corrija a cornija com orgia
Sob o alpendre o pâncreas
O íleon na sarjeta
Vontade de ser ilha
Apostema no poste
Como pôster no seu armário
O prosterno
Tudo que foi postergado
Deixo para a posteridade
Postres para a solidão.

EPR

P.S-Continuação da poesia A angústia da relevância