ONTEM SOBRE ONTEM
André Carneiro
Buzino para a pomba gorda
a rua empoeirada.
Cães não se conformam
com as rodas estranhas.
Reclinada no banco
você se queixa de algo,
talvez a salada murcha
ou minha ânsia de pontualidade,
ou dos franceses vindos para o lanche.
Engulo a estrada,
quase ultrapasso o caminhão fantasma,
mas não enfrento a mão errada
na curva rodovia dos atos.
Abro o portão eletrônico,
o carro arrefece a ânsia cega
e descansa as válvulas de aço.
Seus átomos, prótons e neutrôns
sustentam sua matéria sem veias e nervos.
Escadas, fechos e travesseiros
também são feitos com a fórmula
da minha carne primata, de peixe e vertebrado.
O cenário eu construo,
não importa se gestos são
pensamentos na matéria cinzenta.
Circulo e falo, cada palavra é signo,
sugere algo abstrato ou sólido aparente,
provoca atos da carne ansiosa.
Somos os documentos nas gavetas,
arquivos, fitas magnéticas.
Diante do inquisidor
inventamos as respostas.
Se o espelho devolve outro rosto,
a chave não abre a porta,
o desespero enlouquece com a perda do ontem.
Aqui, agora, duram milionésimos de segundo.
0 calendário imobiliza o passado.
Até o futuro do sonho acordado
mora na memória.
Sinto a batida da veia com o dedo,
o sangue já fugiu do braço,
o beijo caiu no abismo,
o orgasmo é clarão do incêndio,
corre o espermatozóide,
abraça o óvulo, inventa olhos e pernas,
salta para a mãe apertado nos braços,
cresce a cada instante, talvez escreva versos,
rugas, cabelos brancos,
ontem sobre ontem a humanidade inteira.
Palíndromo urbano
Mais do que listras
Vontade de ser zebra
A sola solaz claudicante
Clastomania do Clástico
Esmaga a chaga
Vontade de ser capacho
Alcatifa do alcachinado
Alfombra sem sombra
Carpetar o vazio
Esquálida Laura abráquia
Testemunha ocular da sebaça
Seus olhos são as câmeras de segurança
Vontade de ser placa de plaga
Sarandi às vezes não inspira
Enquisa da esquina
A ausência de quinase a deixou estéril
Avenida com vontade de ser ave
Avatar de si mesmo
Prefixo decrescente anuncia o fim
Prestes a entrar em declínio.
Ednei P.Rodrigues
Glossário:
Clastomania-Desejo irresistível de destruir
Clástico-Desmontável
alcatifa-tapete
alcachinado-abatido
alfombra-tapete
abráquia-sem braços
Sarandi-Ilha pequena repleta de pedras ou pedregosa
Uma cinase ou quinase, é um tipo de enzima que transfere grupos
fosfatos de moléculas doadoras de alta energia (como o ATP) para
moléculas-alvo específicas (substratos). O processo tem o nome de
fosforilação. A molécula-alvo pode activar-se ou inactivar-se mediante
a fosforilação.