quinta-feira, 29 de setembro de 2016

Anagramas Mitológicos



                                                    
 Conheço as suas raízes. É tudo o que vejo. 
Há um movimento que a percorre devagar. Não sei 
se ela existe. Imagino apenas como são os ramos, 
este odor mais secreto, as primeiras folhas 
aquecidas. Mas eu existo para ela. Sou 
a sua própria sombra, o espaço que fica à volta 
para que se torne maior. É assim que chega 
o que não passa de um pressentimento. Ela compreende 
este segredo. Estremece. Comigo procuro trazer 
só um pouco de terra. É a terra de que ela precisa. 

Fernando Guimarães, "Limites para uma Árvore"'   


Anagramas Mitológicos

Nem mil minúsculos petaliformes sóis
Iluminam o lúrido estro
Despetalados pelo Siroco
Péuva chuva áurea
Chamado o machado,manchado de seiva
Surge a noite dendrofoba com sua alabarda
Futura manchua
Tabebuia continua imponente
Leto é toda letomania que vitaliza
Toda argúcia de Guaraci
A histeria de Astéria 
Uma artéria Astéria por atresia
Estaria entre  membros inferiores
Inverte o pulmão virente
Pediremos o Peridesmo espremido
Algo que substitua o átrio
Algo pátrio de troia
Algo para o troile leitor
Algas na algaravia explícita
Padina ainda evoluindo
Ulva vulva na volúpia
Frústula pústula que se desenvolve paulatinamente.

                                      Ednei Rodrigues


Glossário:

Siroco:Vento seco e quente
Péuva:ipê
alabarda:machado antigo
manchua:embarcação
Tabebuia:ipê
Leto :deusa da noite
letomania:Idéia fixa de morte, de suicídio.
Guaraci:Sol
Astéria :noite(mitologia)
atresia:Estreitamento de orifício natural do corpo.
Peridesmo:membrana que envolve os ligamentos.
troile:ave
Padina,Ulva,Frústula=algas


   A árvore da sombra
tem as folhas nuas
como a própria árvore ao meio-dia
quando se finca à terra
e espera
como um cão espera o regresso do dono.
Nós abrigamo-nos mais tarde ou mesmo agora num lugar
muito distante
onde o tempo recorta
um tapete que esvoaça no papel.
A casa da sombra
é branca e habitada.
Somos nós ainda
sentados ao fogo que o teu sorriso
acende e aconchega
no silêncio que ilumina
a árvore da sombra
para que a noite desenhe
o seu nome visível
e a sombra possa contemplar
Os ramos mais belos e o tronco mais esguio
do seu objecto.
Nesta sombra há um imenso amor
ao meio-dia.
A hora dos prodígios
é feita de segundos do tempo que há-de vir
e o horizonte
é a proximidade total da tua boca.

Rosa Alice Branco, "'O Único Traço do Pincel"'

sábado, 10 de setembro de 2016

Anagramas trágicos


Ascensão


Beijava-te como se sobe uma escadaria: 

pedra a pedra, do luminoso para o obscuro, 

do mais visível para o mais recôndito 

- até que os lábios fossem 

não o ardor da sede, nem sequer a magia 

da subida, 

mas o tremor que é pétala do êxtase, 

o lento desprender do sol do corpo 

com o feliz quebranto dos meus dedos. 


João Rui de Sousa, "'Obstinação do Corpo"'



Anagramas trágicos

A bota treme
Cálida Cáliga
A pedra pulsa
Rastro de sangue no alabastro
Balastro como abrastrol
Outro placebo
Tegumentar a essência com tégula 
O talco do esteatito como actol
Cherte inerte
Diverte os sobreviventes
Puna a puma púmice
Bagaço de bagacina como baganha 
Esse Sol loesse que não ilumina
Alabanda desanda
Fraga Frágil despenca
Esmaga o maganaz
Esmear restos com o Esmeril
É lícito o ictiol no lítico predominante 
Roçar as rochas como parafilia
Adstringente adstringopenispetrafilia.

                                                 Ednei P.Rodrigues

Glossário:
Cáliga:bota de meio cano


alabastro:Rocha branca
balastro:

Cascalho ou saibro que se coloca nas linhas férreas para fixar os dormentes.

abrastrol:

Anti-séptico forte

Tegumentar:aquilo que reveste o corpo

tégula:

tipo de telha feita em barro.

actol:

antisséptico.
Cherte:rocha
púmice:rocha
bagacina:rocha
baganha:epiderme
loesse:rocha amarela
alabanda:mármore negro
fraga:rocha
Maganaz:furúnculo
ictiol:
Óleo sulfuroso empregado no tratamento de diversas doenças da pele.

lítico:relativo á pedra

O Medo

Que não se confunde. Por existir se ganha
e nos pertence. Sílabas ou linguagem,
busca o centro nas mãos, nos olhos, o contacto
incessante. Percorre os muros da memória,

na penumbra da palavra se instala. Nada
partilha. Como um monólogo se mascara
de gemas, rumores e gotas de ervas. Flui
e estilhaça as pálpebras, domina as casas,

abala os sismos. Ara o corpo, viva árvore
em ascensão, ronda a pele e os jorros do ar.
Até que nos toma e molda o ventre, descobre

o preço diário da invisivel folhagem
solar. É o que se oculta. Livor, sílaba,
margem eterna da inicial prudência.

Orlando Neves, "Decomposição - o Corpo"