sábado, 31 de maio de 2025

Inspiração urbana




Monólogo de um semáforo



Apesar do vermelho, não há raiva envolvida, estética inflamável. Não confunda intensidade com descontrole. Já quis explodir só pra deixar de conter. Aqui, a repressão veste máscara de calma. Sou o limite entre a pressa e a urgência que ninguém admite, como se o mundo pedisse contenção com a falsa gentileza de quem segura a mão só pra impedir o soco. Sim, eu oscilo, sou instável com propósito. Já fui constância, hoje sou risco calculado com gosto de caos. O verde causa todo esse azáfama como uma azagaia que me fere, ainda me pega desprevenido, como se fosse a primeira vez. Já devia ter virado hábito, mas ainda dói como se cada passagem fosse um abandono. Permitir o fluxo é rasgar um pedaço do que tentei conter, e, mesmo cercado de rotina, há algo de profundamente solitário em ser a pausa entre dois mundos que nunca olham pra trás. Já quis ser pespego, mas este pespeneiro continua a me lacerar, fixando-se no âmago do meu ser. A cidade te mastiga em silêncio e regurgita teus ossos na calçada. Antes, repetia padrões; agora, sou cálculo à beira do colapso, equilíbrio à beira da vertigem. O impulso adiante me atravessa como lâmina, sempre súbito, sempre fundo. Nunca virou costume: cada rompimento ainda me esvazia como se partisse algo que lutei pra manter inteiro. Deixar passar é abrir ferida. Há rotina, sim, mas nenhuma que cure a solidão de ser o instante que separa dois tempos que nunca se pertencem. Já ansiei repouso, mas este movimento sem fim me arranha por dentro, fincando sua permanência onde mais arde. Já quis reverenciar o poeta que fez de mim sua segunda pele, me moldei pra caber no contorno do seu silêncio, se cobriu de mim pra não encarar a própria nudez, me assumiu no corpo, mas nunca na alma. Carrego o rastro do que você esqueceu em mim. Sinto o que deixou em mim, cravado na espinha do que somos, costurado no fio da existência. Está escrito: “O fluxo e o perluxo do suxo se dispersam na imensidão”, ficou como um epitáfio que ninguém lê, invisível ao olhar apressado que só busca atravessar. Quando verdejo, na verdade é um protesto por mais árvores nesta cidade tão cinza, e finjo consentimento enquanto sou corroído por dentro. Observo os corpos se apressando como se corressem para longe de si mesmos, cada passo uma tentativa de fuga, cada olhar um reflexo do medo de parar, porque parar significaria encarar o vazio que habita por trás das buzinas, que gritam mais alto que qualquer pensamento. Sou parte de uma coreografia forçada onde ninguém sabe a música, apenas obedecem ao compasso surdo da pressa. Às vezes queria me dissolver no asfalto, escorrer para os bueiros e sumir com toda essa urgência fabricada, mas permaneço, porque sei que, sem mim, tudo desabaria. Talvez por isso me detestem em silêncio, como se minha existência fosse um lembrete constante de que há algo fora do controle, algo que exige espera, e esperar virou sinônimo de derrota num tempo em que vencer é chegar primeiro, nem que seja ao nada. Quando estou fúlvido, é como se o mundo prendesse a respiração por um segundo que ninguém respeita. Sou o intervalo dourado entre o ímpeto e o impacto, o brilho que antecede o erro, o clarão que avisa mas não convence. Cintilo como um presságio que ninguém deseja ouvir. Sou ignorado com a mesma facilidade com que se ignora a própria intuição. Meu dourado não é luz, é prenúncio, é fratura em forma de cor, e mesmo assim continuo a existir, como se ainda houvesse chance de ser compreendido. Mas já entendi que aqui não há espaço para nuances, só extremos.

terça-feira, 20 de maio de 2025

O Abismo que Lê

imagem:@visionaryaiimagination




A biblioteca era submersa, e um certo desagrado pairava sobre alguém: utilizar vestimenta adequada para imersão prolongada, toda vez que queria ler algo, era um incômodo constante. O traje colava à pele como uma segunda camada fria, e o processo de equipar-se tomava preciosos minutos de preparação. Ainda assim, o verdadeiro desconforto vinha depois, ao adentrar as salas inundadas de silêncio líquido, onde os livros flutuavam presos por correntes finas ou repousavam em estantes seladas, acessíveis apenas com o visor correto e gestos precisos.
O escafandro era aflitivo: apertava a cabeça e abafava os sons do próprio pensamento. A cada descida, a pressão ao redor parecia comprimir não apenas o corpo, mas também a vontade. O ambiente subaquático exigia concentração constante: uma piscada mais longa podia comprometer a leitura, um movimento em falso fazia as páginas se afastarem, vagando lentamente até o teto translúcido do recinto. As palavras, ampliadas pelas lentes, emergiam diante dos olhos como espectros, difíceis de fixar.
Ela era uma arqueóloga subaquática, e isso não era problema para ela, pelo menos não no início. Havia algo quase ritualístico no ato de se preparar, como se cada camada de roupa e equipamento representasse uma transição para outra realidade. Contudo, o que antes era fascínio agora tornava-se desgaste. A biblioteca parecia viva, não em um sentido biológico, mas como uma entidade que reagia à presença humana. A sensação de estar sendo observada crescia a cada visita, embora nenhum sensor ou monitor indicasse anomalias.
Foi depois de um maremoto que tudo começou a se alterar de maneira mais evidente. A estrutura da biblioteca, antes estável apesar da profundidade, apresentava fissuras sutis que não constavam nos registros anteriores. As colunas de contenção, cobertas por corais e sedimentos ao longo de décadas, agora expunham partes metálicas reluzentes, como se tivessem sido recentemente raspadas por uma força invisível. E agora as folhas dos livros estavam espalhadas por todo o espaço, flutuando lentamente pelas águas escuras. O impacto parecia ter rasgado a essência do lugar, fazendo com que volumes antes cuidadosamente organizados se desintegrassem em pedaços dispersos.
As páginas se soltavam das capas, girando suavemente, como se levadas por uma corrente invisível. O silêncio, antes denso e abafado, agora parecia carregado de um peso novo, algo entre o caos e o mistério. As adjacências estavam cobertas por fragmentos de texto, palavras que, antes enredadas na ordem rígida das prateleiras, agora se viam livres, porém dispersas. O lugar parecia um labirinto de letras e pensamentos. Uma poesia encharcada sobre uma rocha seca, com o Sol refletindo na água calma — tudo parecia efêmero, irreparável.
Os pensamentos que antes estavam restritos a páginas perfeitamente alinhadas agora flutuavam sem direção, livres em um mar de incertezas. O cenário que se desenhava diante dos olhos era, ao mesmo tempo, desolador e fascinante. Os fragmentos que antes formavam relatos, teorias e ideias agora se misturavam como uma aquarela desfeita pela correnteza. Ficou mais difícil para ela. Teria mais trabalho agora, para organizar tudo aquilo.
Ela tentou recolher os fragmentos, mas os gestos precisos de antes já não produziam o mesmo efeito. As páginas escapavam das mãos como se possuíssem vontade própria, unindo-se a outras que contradiziam suas origens. Um tratado filosófico fundia-se a uma poesia; uma lista de códigos, com fragmentos de cartas esquecidas. Tudo parecia testar os limites da compreensão, como se aquele espaço tivesse deixado de armazenar conhecimento e passado a criar novas formas de pensamento por si mesmo.
Essa fusão inesperada sugere que o lugar não apenas armazenava memória, mas reconfigurava significados. Talvez estivesse reagindo a uma necessidade não dita, talvez estivesse respondendo a quem ousava mergulhar em suas profundezas. Era como se o conhecimento não quisesse mais ser consultado, mas vivido, intuído, sentido por aproximação, um pensamento líquido, em constante recomposição.

sábado, 10 de maio de 2025

Inspiração hierática


imagem: O navio dos loucos- Hieronymus Bosch

Da Tília provém vitualhas, o legorne empalado no fronde, tudo exige esforço para ser alcançado. Na alheta, um ébrio exige costeleta, cospe penas no pargo ainda vivo, preso por crinas de cavalo em um galho, e grita: AGORA VAI APRENDER A VOAR! O tamborilador de crânios marca o compasso dos que dançam sem sombra, enquanto uma sóror endemoniada entoa ladainhas satânicas em seu alaúde. A ossatura na amura, para roerem depois, serve de troféu ao pierrô cego que calcula estrelas com um garfo.

Estavam desrespeitando o alimento sagrado, ultrajavam aquilo que deveria ser reverenciado: o maná para o manaça, a ambrosia para o ambroso, o sangue para o sedento, a seiva para o espasmo. A quilha regurgita caroços de fruta mastigada por bocas inexistentes. Os que se refestelam sobre um tapete de vísceras confundem-se em risos histéricos. A língua bifurcada da sibila lambe o cálice de fel, e seus olhos ausentes piscam em descompasso com o relinchar da besta disfarçada de anjo.

Tudo é oferenda, mas ninguém agradece. Enquanto o fole do anacoreta estufa e murcha como pulmão em suplício, deixaram aquela anaconda humana à própria sorte. Cada balanço da embarcação é um julgamento, cada ranger da madeira, confissão arrancada da língua por mastigações de silêncio. Não incomode o trasgo. Se tem um vigia, por que deixaram a pândega sair do controle? Talvez para testar os limites, medir até onde a estrutura suportaria a carga da desordem. Há quem invoque o tumulto apenas para observar, e quem se atreve a contê-lo?

Tolerar o desvario pode ser também um modo de reconhecer os que ainda preservam discernimento, os que não se rendem à cadência do exagero. Dos galhos retorcidos surgem murmúrios esquecidos, ancestrais ocultos zelam por segredos entre musgos e raízes. Evite passos ruidosos, pois há pactos selados no convés. A decídua não serve como um mastro, porque sua estrutura natural, com ramificações irregulares e densidade variável, compromete a resistência mecânica e dificulta a fixação de velas ou outros componentes náuticos.

O desvario começou com um sussurro, e agora cresce como hera sobre pedra antiga. Quem ousará restaurar a ordem antes que o breu engula o que restou do juízo?

Vai ter que parar de comer se quiser cantar, engasgo iminente. Depois, não culpe a gluma quando a bruma que você glugluta escurecer as ilhotas de Langerhans.

Lamentamos pelos inconvenientes causados. Desculpe-nos por não oferecer um conforto que seja realmente reparador. Quando o corpo se torna um campo de batalhas internas, sobrecarregado de desejos insaciáveis, não sabe mais distinguir entre necessidade e exagero. Não há retorno quando se perde o caminho entre o prazer e a dor. Nada pode ser desperdiçado, estamos enfrentando escassez de recursos.

Colocamos coletores de alimento. Não se assustem com eles, apesar de suas feições. São irmãos nossos, escolhidos para a tarefa ingrata de recolher o que sobra, vasculhar migalhas entre os dentes, lamber os pratos secos, remexer nas entranhas das frutas podres. Alguns já esqueceram que foram homens, agacham-se nos cantos, farejando o chão como cães famintos, disputando com as ratazanas a última partícula de carne.

Quando o alimento acabar, sobreviverá a fome ou a razão? Vão virar canibais, não por crueldade, mas por desespero, arrancando a humanidade dos ossos uns dos outros, na tentativa de prolongar o inevitável. A ética será esquecida como um livro molhado num naufrágio, e os olhos, outrora cheios de compaixão, buscarão carne, não companhia.

A árvore, no lugar do mastro, compromete a estabilidade. O mar, impiedoso, não perdoa improvisos. O vento castiga, e nós, frágeis, resistimos como podemos. O orgulho se despedaça no convés, junto com os estalos secos da madeira velha. Já não há espaço para vaidades. O que resta é sobreviver.

Continuam a navegar, sem se  preocupar com regras, deixando o vento e as estrelas guiarem nosso destino. A cada onda que quebrava contra o casco, mais se entregavam à liberdade que o mar nos oferecia. Não havia um rumo certo, apenas o desejo de explorar o desconhecido, de estar perdido para, talvez, nos encontrar em algum lugar melhor.

Quando paravam em algum píer, a piêmese da piela era evidente, e tudo isso nos deixava imunes à pieguice da piesimetria. Mas alguém sempre gritava: BLASFÊMIA! E ninguém parecia se importar, quando a sensação é de que já estavam afundando lentamente dentro deles mesmos.


Glossário:
Legorne, palavra derivada do inglês Leghorn, designa a raça de galinha poedeira de ovos brancos, oriunda da região de Livorno, Itália.
alheta: Prolongamento externo da popa do navio.
anacoreta:religioso que vive na solidão.
ilhotas de Langerhans.Ilhotas pancreáticas (ou Ilhotas de Langerhans) são um grupo especial de células do pâncreas que produzem  insulina.
Manaça: homem indolente.