Monólogo de uma retroescavadeira
Acho que errei a terceira nota; não me lembro se era um si bemol ou um lá sustenido. Ninguém vai perceber o erro, vão pensar que é uma reinterpretação criativa. Talvez até possa inspirar outras pessoas a experimentarem suas próprias interpretações. No fim das contas, a música é sobre expressão e sentir, não é? Vou me concentrar na emoção da performance e deixar a técnica um pouco de lado por agora. Quem sabe essa “improvisação” não se torna um destaque inesperado? Talvez devesse tocar uma música mais fácil, o público sempre gosta das populares, aquelas que tocam direto na memória afetiva, que todos sabem cantar junto. Mas será que essa escolha não seria uma forma de fugir daquilo que realmente importa? Qualquer coisa é melhor do que esse silêncio que paira no ar. Existe beleza nas imperfeições. Este escafoide pesado não contribui em nada. Talvez devesse escaiolar antes, para criar algo escalafobético sintético. Desista, não vou cavar sua cova. Talvez uma horta. A morte não me inspira. Com algumas adaptações, posso prever terremotos, vontade de ser sismógrafo, salvar vidas. Já cansei de destruir formigueiros. Posso estabelecer um contato com os intraterrenos, quem sabe? É claro que tudo isso soa como uma ideia improvável, mas já estive em situações onde o impossível parecia tão ao alcance. Quem disse que o abismo não pode ser compreendido? Se há seres que habitam as profundezas, talvez eles saibam algo sobre o que está oculto para os olhos comuns. Pode ser que eles tenham um modo de se comunicar, algo além das palavras, algo que se transmite através de vibrações e ressonâncias, como se as ondas do som e da terra fossem uma linguagem própria. Sua obsessão por abismos me preocupa. Talvez queira criar tembés em terrenos nivelados para compensar o seu vazio interior, um labirinto de angústias dentro de você, um lugar onde, por mais que tente, nunca consegue escapar de você mesmo. Talvez a busca por voragens seja apenas uma forma de se confrontar com o próprio abismo interior, esse vazio imenso que insiste em não ser preenchido, não importa o quanto se tente. "Quando se olha muito tempo para um abismo, o abismo olha para você." Espero que você consiga superar tudo isso. Certamente há outra forma de lidar com isso, procure ajuda. Talvez seja difícil enxergar isso agora, mas continuar cavando abismos só vai te afundar ainda mais nas sombras que você já conhece tão bem. O vazio que você busca preencher, essa sensação de estar preso dentro de si mesmo, não será apagado com mais escavações ou labirintos criados para esconder o que você não quer encarar. O problema não é o abismo em si, mas o modo como você tenta lutar contra ele, como se estivesse sempre buscando uma saída que só te leva mais fundo.