Celso Suarana é natural de Minas Gerais e radicado em São Paulo.Músico, educador,escritor e editor de livros,criador do selo Abarca Editorial.Publicou: o Cabaré do fim dos tempos(romance),Queridas quimeras(minicontos), e os infantojuvenis: Quando aprendi a dançar com o vento, em coautoria, e A noite dos gatos chorões,livro escolhido para integrar o PNLD 2023
Monólogo de uma guilhotina
Sim, estou em desuso, agora virei uma atração turística, tiram fotos e fazem chacota de mim, ninguém tem mais medo de mim. O tempo diluiu meu poder, transformando-me em uma lâmina enferrujada e emperrada que não corta nem papel e uma mera curiosidade histórica. Ainda tem nódoas de sangue aqui, mas ninguém se importa, no entanto, mesmo que tenha perdido minha ameaça física, ainda carrego o peso das vidas que ceifei, uma lembrança sombria da fragilidade da humanidade e dos extremos que podemos alcançar em nome de nossas crenças. Comecei a notar minha própria fraqueza quando uma panchlora, que acidentalmente decapitei como parte de um teste, mostrou-se surpreendentemente viva. Fiquei perplexa ao ver que, apesar do que fiz, ela continuou a se mover como se nada tivesse acontecido. Percebendo que algo extraordinário estava acontecendo, me vi intrigada com a sua persistência . Sua resistência desafiava minha compreensão do que era possível. Será que eu estava perdendo minha eficácia, ou ela era extraordinariamente resiliente? A situação me deixou pensativa, questionando minha própria natureza e habilidades. Só depois fui entender que as baratas têm a capacidade de sobreviver por um curto período de tempo após perderem a cabeça devido à sua anatomia peculiar. Isso ocorre porque elas possuem um sistema nervoso distribuído por todo o corpo, permitindo que continuem a se mover e até mesmo responder a estímulos por algum tempo após a decapitação. Foi uma revelação intrigante, expandindo meu entendimento sobre esses seres que eu, inadvertidamente, havia subestimado. Aprendi uma valiosa lição sobre a resiliência e adaptabilidade das criaturas que compartilham este mundo conosco. Lembro da flebotomia que fazia, meu patíbulo era bíbulo agora com esse crucíbulo, fazem até festas aqui. Ontem à noite teve até um sarau em homenagem ao poeta Augusto dos Anjos. Enquanto as pessoas declamavam seus versos melancólicos, eu sentia uma pontada de nostalgia, lembrando-me das cabeças que rolaram ao som de suas palavras. A irreverência de ser palco de uma celebração poética em meio ao cenário de minha história macabra não me escapa, é como se o destino zombasse da minha antiga função. Só não dá para fazer pic-nics aqui, os espinhos do tríbulo não permitem. A ironia da história me consome, apenas um sufíbulo tremulando ao vento como encômio das existências que interrompi, todos devem ser respeitados e o turíbulo queimando o incenso e purificando o ar das lembranças ancestrais, enquanto eu perduro no ciclo da eternidade. Enquanto testemunho esse espetáculo da natureza, condenada a uma existência paradoxal entre a necessidade e a moralidade. Talvez algum dia eu tenha uma utilidade mais significativa uma redenção, do que me foi atribuído, uma transformação que me liberte das amarras do passado e me permita ser mais do que apenas uma máquina de julgamento implacável. Talvez possa ser um símbolo de renovação, de reinvenção, um instrumento não apenas de punição, mas de esperança e reconciliação. Cansei de revoluções quero algo mais pacífico como contemplar este Pôr do Sol que anuncia mais um dia que se acaba.