Mais uma noite mal dormida, mansonia da minha insônia; se fosse uma tsé-tsé, eu agradeceria. Através da mansarda, mansamente, sombras distorcidas tentam me pegar — todo mansedume contra o pesadume. No ecrã, imagens eróticas surrealistas surgem na tentativa de me inspirar; foi quando eu percebi que só você me inspira, enquanto o desejo se contorce em silhuetas irregulares, como mãos de Dalí esticando o impossível sobre minha pele febril.
Nesse instante, compreendi que não eram apenas os relógios que estavam derretendo. O suor do meu corpo nubiforme goteja como chuva; sob minha cama formou-se um arco-íris, onde tudo escorre pelos contornos de corpos impossíveis. Ainda há um lençol freático para frear todo frenesi, e eu me perco num labirinto de um desejo que não se dissolve como névoa ao amanhecer — sua silhueta se materializa nas curvas distorcidas, olhos como portais de Magritte me puxando para outro nível de existência.
Foi então que notei um fluxo intenso de avestruzes no corredor; não dava para ir ao banheiro. Era preciso pagar pedágio, mas a cancela era feita de espelhos líquidos, e cada moeda exigida refletia um fragmento do meu cansaço. Os avestruzes marchavam com gravidade clerical, pescoços em espiral, carimbando o chão com selos de alfândega. Um deles cochilou em meu ombro, e o corredor se alongou como um elástico cansado.
Voltei-me para dentro: o teto respirava como se o ar tivesse sido filtrado por alturas impossíveis, rarefeito, fino demais para sustentar o dia. Cada inspiração vinha curta, quebradiça, e eu sentia os pulmões aprenderem outra gramática. O oxigênio chegava em sílabas, e o quarto flutuava alguns centímetros acima do chão, sustentado por esse quase-nada. Ao expirar, o teto devolvia um frio leve, de altitude, e os pensamentos ficavam translúcidos, como se pudessem rasgar.
Respirei junto, com cuidado, temendo que um fôlego mais fundo rasgasse o tecido do espaço. Então compreendi que não estava em casa, mas me sentia confortável, como quem reconhece o próprio corpo em um sonho alheio. As paredes se afastaram um pouco mais, respeitosas, e o chão cedeu o suficiente para me acolher sem me prender. As paredes se povoaram de criaturas de Max Ernst, híbridas de ave e memória, caminhando entre rachaduras como se o reboco fosse floresta. No canto do quarto, um corpo se decompunha em curvas suaves, à maneira de Yves Tanguy, paisagem orgânica sem horizonte, onde meus pensamentos escorregavam sem ponto de apoio.
Havia ali uma hospitalidade estranha, feita de silêncio e suspensão, como se o lugar soubesse exatamente o peso que eu podia suportar.
