terça-feira, 24 de março de 2015

Outro Outono




Solitário


Augusto dos Anjos
Eu e Outras Poesias. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1998.

Como um fantasma que se refugia 

Na solidão da natureza morta,
Por trás dos ermos túmulos, um dia,
Eu fui refugiar-me à tua porta!

Fazia frio e o frio que fazia
Não era esse que a carne nos contorta...
Cortava assim como em carniçaria
O aço das facas incisivas corta!

Mas tu não vieste ver minha Desgraça!
E eu saí, como quem tudo repele,
- Velho caixão a carregar destroços -

Levando apenas na tumba carcaça
O pergaminho singular da pele
E o chocalho fatídico dos ossos!  






Natureza morta

Ednei Pereira Rodrigues

O viço víbice
Galhofa para o galho
O látex no pirex
O abrochar da borracha
O rancor do ranco
Arranca a ranca
A grua consegue erguer a Lua
A ausência de gravidade se encarrega de Ícaro
A cábrea para aprumar o cabaré
Hamadríadre com um guindaste
Tenta elevar algumas folhas
A grima da grimpa
O cárus da caruma
O caucho cáustico
O carusma da madeira que crepita
O ébano anebo
A leniente lenha
O machado manchado de seiva
Adianta o Outono.




                                           Hamadríadre

 chão de caruma,
crepitar no pinheiral -
passos ou fogo?


 Carlos Seabra



Glossário

Viço: A força, a exuberância vegetativa das plantas
Víbice:s.f. Golpe de vergasta.
Fig. Açoite, castigo.
Galhofa:deboche
abrochar:apertar
ranco e ranca:Ramo ou galho
Grua e cábrea: Aparelho destinado a levantar cargas; guindaste.
Hamadríade:Mitologia Ninfa dos bosques, que nascia e morria com a árvore em que se acreditava estivesse encerrada e que a ela era destinada.
grima:ódio,raiva
Grimpa:Levantar
cárus:coma
caruma:folha
caucho: Árvore da família das moráceas, cujo látex dá uma borracha de qualidade inferior.
cáustico: Que queima, corrosivo.
ébano:madeira de cor escura
Anebo: não atingiu ainda a puberdade




Canção de Outono

 Cecília Meireles (1901 - 1964) Poesia completa: Volume 2. Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira, 2001.



Perdoa-me, folha seca,
não posso cuidar de ti.
Vim para amar neste mundo,
e até do amor me perdi.
De que serviu tecer flores
pelas areias do chão
se havia gente dormindo
sobre o próprio coração?

E não pude levantá-la!
Choro pelo que não fiz.
E pela minha fraqueza
é que sou triste e infeliz.
Perdoa-me, folha seca!
Meus olhos sem força estão
velando e rogando aqueles
que não se levantarão...

Tu és folha de outono
voante pelo jardim.
Deixo-te a minha saudade
- a melhor parte de mim.
E vou por este caminho,
certa de que tudo é vão.
Que tudo é menos que o vento,
menos que as folhas do chão... 




 
 No coração do inverno -
a única folha no ramo
luta contra o vento


 Stefan Theodoru

sábado, 21 de março de 2015

Múltiplo Leminski

Hoje fui na exposição Múltiplo leminski que está na caixa cultural até o dia 3.mai.2015.




Linha de Produção
Ednei Pereira Rodrigues

Inveja os invertebrados a prensa
A invenção com a inversão
Em desuso desuni
Abuso do confuso
A falência múltipla dos órgãos
Ainda pensa o poeta
Mesmo depois da dispensa
O vácuo da despensa
Digerir o que digito
A bancarrota arrota
A fome do pronome
A inópia do inovador
O arrocho do arroubo
O atroz arroz engasga
O feijão feérico

Um Epicúrio murmúrio antes da epidemia
A molécula gula
A frase engatilhada
Engarrafada a mensagem do náufrago
O segredo do torpedo.


Glossário:
prensa: Máquina manual ou mecânica para comprimir uma coisa entre as suas duas peças principais.
bancarrota:Falência
Inópia:escassez
Atroz:Cruel
Arrocho:apertar
Feérico: Que faz parte de um mundo de fantasia.
Epicúrio:prazer exagerado


 A maioria pensa com a sensibilidade, eu sinto com o pensamento. Para o homem vulgar, sentir é viver e pensar é saber viver. Para mim, pensar é viver e sentir não é mais que o alimento de pensar.
Fernando Pessoa




O Náufrago

Ednei Pereira Rodrigues


Nocaute
O leiaute sem lei chasqueia o bardo
Sem barco 
Perdeu o leme
Encontrou leminski 
Glabro,a escuma marinha
Debuxou um bigode
Migalhas de gaias
Agora só falta uma razão para escrever
Indispensável Individualismo
Social ao soçobro
Recobro a solidão  
Talvez o rasgo
A rasura é o meu rastro 
Limalha de canalha
Algum indício do indigente
Dínico do Índico
A oura que vale ouro
A apsiquia do apside
Vide áspide.



Glossário:

bardo:poeta
Glabro:sem barba
escuma:espuma
Gaias:Redemoinho de pêlos no peito do cavalo.
soçobro:Naufrágio
Limalha:Partículas de metal produzidas pela fricção da lima: limalha de ferro
Dínico,oura e apsiquia:vertigem
apside: O ponto da órbita extremo do eixo maior da elipse, em que um planeta ou satélite se acha mais perto ou mais longe do centro.
Linha das apsides, o diâmetro maior da órbita.
Áspide: espécie de víbora(cobra)






O NÁUFRAGO NÁUGRAFO
Paulo Leminski

   a  letra A a
funda no A
   tlântico
e pacífico com
   templo a luta
entre a rápida letra
   e o oceano
lento

   assim
fundo e me afundo
   de todos os náufragos
náugrafo
   o náufrago
mais
   profundo




Cada poema é uma garrafa de náufrago jogada às águas... Quem a encontra, salva-se a si mesmo.
Mario Quintana

Poema de sete faces

De Alguma poesia (1930) Carlos Drummond de Andrade
 
Quando nasci, um anjo torto 

desses que vivem na sombra
disse: Vai, Carlos! ser gauche na vida.

As casas espiam os homens
que correm atrás de mulheres.
A tarde talvez fosse azul,
não houvesse tantos desejos.

O bonde passa cheio de pernas:
pernas brancas pretas amarelas.
Para que tanta perna, meu Deus, pergunta meu coração.
Porém meus olhos
não perguntam nada.

O homem atrás do bigode
é sério, simples e forte.
Quase não conversa.
Tem poucos, raros amigos
o homem atrás dos óculos e do -bigode,

Meu Deus, por que me abandonaste
se sabias que eu não era Deus
se sabias que eu era fraco.

Mundo mundo vasto mundo,
se eu me chamasse Raimundo
seria uma rima, não seria uma solução.
Mundo mundo vasto mundo,
mais vasto é meu coração.

Eu não devia te dizer
mas essa lua
mas esse conhaque
botam a gente comovido como o diabo.

domingo, 15 de março de 2015

Manifesto do Estro



Revolução

Sophia de Mello Breyner Andresen,"O Nome das Coisas"


Como casa limpa
Como chão varrido
Como porta aberta

Como puro início
Como tempo novo
Sem mancha nem vício

Como a voz do mar
Interior de um povo

Como página em branco
Onde o poema emerge

Como arquitectura
Do homem que ergue
Sua habitação.




Revolução Interior

Ednei Pereira Rodrigues

Zaragata do atado a devaneios
Ataúde pérvio
O coma da gnoma
Evoluir atráves da gnose
Não freme com o godeme
A goga do gougre
Atear o atenuante
Atípico Atrito
Quando uma atriz governa
A atrofia do atroz
Renite e não renúncia
Impeachment mentado
Onde impera o impene
Um imperfeito império
A fagulha da espórtula
Adianta a adiafa do afano
Propicia Propina
Proporcional ao progresso
Propeli o propósito
O prolapso do que penso.



Glossário estrambótico
 zaragata:desordem, confusão, algazarra
Gnoma:provérbio
Gnose: Conhecimento ou sabedoria; ação de conhecer, de saber.
Godeme:Murro na cara.
goga:valentia
gougre:se vistir mal
mentado:pensado
adiafa&espórtula:propina




Terceira Idade

Mário Dionísio

Pior que não Cantar
Pior que não cantar
é cantar sem saber o que se canta

Pior que não gritar
é gritar só porque um grito algures se levanta

Pior que não andar
é ir andando atrás de alguém que manda

Sem amor e sem raiva as bandeiras são pano
que só vento electriza
em ruidosa confusão
de engano

A Revolução
não se burocratiza



quinta-feira, 12 de março de 2015

Terrorismo Poético






Uma Faca nos Dentes

António José Forte

 Um Homem
De repente
como uma flor violenta
um homem com uma bomba à altura do peito
e que chora convulsivamente
um homem belo minúsculo
como uma estrela cadente
e que sangra
como uma estátua jacente
esmagada sob as asas do crepúsculo
um homem com uma bomba
como uma rosa na boca
negra surpreendente
e à espera da festa louca
onde o coração lhe rebente
um homem de face aguda
e uma bomba
cega
surda
muda




Heresias

Ednei Pereira Rodrigues

O barbeiro converteu-se ao islã
Seu cliente glabro é acéfalo
E o padre faz missa para o míssil
A hóstia é hostil
O Hoste sem Honra
Um gládio para elidir o gáudio
A degola antes do degelo
Sobrou a glande 
Adaga para o agárico
A sabedoria ínscia do sabre
Abrevia a existência
Catana para catalisar
Não cativa
Alfanje para abscindir o alfaque
Cimitarra arranca o cimélio
Cutelo para a cutícula
Um petardo oculto na pétala
Explode o Exposto
A violência da Virgula.








Bomba Suja

Ferreira Gullar

Introduzo na poesia
A palavra diarréia.
Não pela palavra fria
Mas pelo que ela semeia.

Quem fala em flor não diz tudo.
Quem me fala em dor diz demais.
O poeta se torna mudo
sem as palavras reais.

No dicionário a palavra
é mera idéia abstrata.
Mais que palavra, diarréia
é arma que fere e mata.

Que mata mais do que faca,
mais que bala de fuzil,
homem, mulher e criança
no interior do Brasil.

Por exemplo, a diarréia,
no Rio Grande do Norte,
de cem crianças que nascem,
setenta e seis leva á morte.
É como uma bomba D
que explode dentro do homem
quando se dispara, lenta,
a espoleta da fome.

É uma bomba-relógio
(o relógio é o coração)
que enquanto o homem trabalha
vai preparando a explosão.

Bomba colocada nele
muito antes dele nascer;
que quando a vida desperta
nele, começa a bater.

Bomba colocada nele
Pelos séculos de fome
e que explode em diarréia
no corpo de quem não come.

Não é uma bomba limpa:
é uma bomba suja e mansa
que elimina sem barulho
vários milhões de crianças.

Sobretudo no nordeste
mas não apenas ali
que a fome do Piauí
se espalha de leste a oeste.

Cabe agora perguntar
quem é que faz essa fome,
quem foi que ligou a bomba
ao coração desse homem.

Quem é que rouba a esse homem
o cereal que ele planta,
quem come o arroz que ele colhe
se ele o colhe e não janta.

Quem faz café virar dólar
e faz arroz virar fome
é o mesmo que põe a bomba
suja no corpo do homem.

Mas precisamos agora
desarmar com nossas mãos
a espoleta da fome
que mata nossos irmãos.

Mas precisamos agora
deter o sabotador
que instala a bomba da fome
dentro do trabalhador.

E sobretudo é preciso
trabalhar com segurança
pra dentro de cada homem
trocar a arma de fome
pela arma da esperança.

domingo, 1 de março de 2015

Rio de Janeiro 450 anos





NOITE CARIOCA
Murilo Mendes

Noite da cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro
tão gostosa
que os estadistas europeus lamentam ter conhecido tão tarde.
Casais grudados nos portões de jasmineiros...
A baía de Guanabara, diferente das outras baías, é camarada,
recebe na sala de visita todos os navios do mundo
e não fecha a cara.
Tudo perde o equilíbrio nesta noite,
as estrelas não são mais constelações célebres,
são lamparinas com ares domingueiros,
as sonatas de Beethoven realejadas nos pianos dos bairros distintos
não são mais obras importantes do gênio imortal,
são valsas arrebentadas...
Perfume vira cheiro,
as mulatas de brutas ancas dançam nos criouléus suarentos.

O Pão de Açúcar é um cão de fila todo especial
que nunca se lembra de latir pros inimigos que transpõem a barra
e às 10 horas apaga os olhos pra dormir.








Submerso

Ednei Pereira Rodrigues


Fúlgido Flúmen que deságua na última estrofe
Deixa afável a favela
Inunda meu árido desejo
Afoga devaneios
Asfixia o asfalto
Imerso no imenso
Imbuir o sólido
A afluência da aflição
Mais vulnerável a erosão
Só a letra O flutua
Vaga agarra a sereia
Escafandro para a frase
Faço plágio da praia
O saibro na sua saia
A silica onde atola a síliba
A insolação da inspiração
Deixa tudo adusto
O bronzeamento do brônquio.










FAVELÁRIO NACIONAL
Carlos Drummond de Andrade

Quem sou eu para te cantar, favela,
Que cantas em mim e para ninguém
a noite inteira de sexta-feira
e a noite inteira de sábado
E nos desconheces, como igualmente não te conhecemos?
Sei apenas do teu mau cheiro:
Baixou em mim na viração,
direto, rápido, telegrama nasal
anunciando morte... melhor, tua vida.
...
Aqui só vive gente, bicho nenhum
tem essa coragem.
...
Tenho medo. Medo de ti, sem te conhecer,
Medo só de te sentir, encravada
Favela, erisipela, mal-do-monte
Na coxa flava do Rio de Janeiro.

Medo: não de tua lâmina nem de teu revólver
nem de tua manha nem de teu olhar.
Medo de que sintas como sou culpado
e culpados somos de pouca ou nenhuma irmandade.
Custa ser irmão,
custa abandonar nossos privilégios
e traçar a planta
da justa igualdade.
Somos desiguais
e queremos ser
sempre desiguais.
E queremos ser
bonzinhos benévolos
comedidamente
sociologicamente
mui bem comportados.
Mas, favela, ciao,
que este nosso papo
está ficando tão desagradável.
vês que perdi o tom e a empáfia do começo?