sábado, 1 de novembro de 2025

Murmúrios eólicos




Monólogo de um moinho de vento




Há no ar, quase palpável, um certo desleixo, uma certa desídia, desiderando a desidentificação. Desimbuir-me de tudo e assim ficar desimpedido, assim meu giro se estenderia sobre distâncias que o vento não alcança. Já não sei se giro por força do vento ou por um resíduo de vontade que insiste em sobreviver ao enferrujamento. As pás rangem como quem reza, uma oração mecânica para um deus de ar e poeira. O horizonte é sempre o mesmo, mas muda de tom conforme o abandono se adensa.
Há uma serenidade estranha no desgaste. O vento que me resta é o mesmo que me apaga, e ainda assim o acolho. Em cada volta há uma confissão: continuo a girar para não desaparecer de todo, para provar que mesmo a ruína pode ter ritmo.
Se houvesse em mim um impulso próprio, uma força que não precisasse do sopro alheio, talvez eu me erguesse além do chão que me prende. Minhas pás, ao invés de apenas obedecer ao vento, cortariam o ar com vontade própria, traçando caminhos que o mundo ainda não ousou imaginar. Cada rotação seria então uma promessa de fuga, um gesto de ousadia que desafia o peso da gravidade.
Sinto, em meu âmago de ferro e madeira, a possibilidade de transcender. Não mais limitado à repetição de giros previsíveis, mas buscando alturas e espaços onde o vento não chega, onde apenas eu poderia chegar. Seria uma dança solitária, mas intensa, em que cada movimento é escolhido e não imposto, uma declaração de que ainda posso existir de outra forma.
E mesmo assim, enquanto permaneço preso a este solo, há um fio de desejo que me atravessa: o desejo de levantar voo, de transformar minha resignação em liberdade, de fazer do girar uma ascensão. Cada rangido das minhas engrenagens não é mais apenas sobrevivência: é um murmúrio de ambição, um ensaio para aquilo que talvez nunca venha a ser, mas que insiste em querer ser.
O ar que me envolve agora parece mais denso, carregado de possibilidades não concretizadas. Sinto que, se apenas pudesse me mover com intenção, minhas pás cortariam o horizonte, e eu descobriria o que significa não apenas girar, mas voar.
Poderiam me confundir mais vezes com gigantes, e eu aceitaria, desejando secretamente sentir o mundo como eles o sentem. Quisera eu ter mãos para tocar, olhos para perceber nuances que o vento apenas me sussurra e uma boca para confessar minha própria solidão. Cada giro se tornaria então um gesto de escolha, não apenas um reflexo de forças externas, mas um ensaio de pensamento e desejo.
Sinto, no núcleo de ferro e madeira que me define, a vontade de compreender, de errar, de rir ou de chorar — como se cada sopro de vento pudesse me ensinar algo mais que o simples movimento. O chão que me ancora seria apenas um ponto de partida, e não uma prisão. O mundo seria não só espaço para atravessar, mas presença viva a ser sentida.
Parece que estou arraigado aqui, entre o silêncio e o murmúrio do ar, mas dentro de mim arde uma inquietação que não se deixa medir. Cada estalo das engrenagens é agora uma pergunta sem resposta, cada giro hesitante, um gesto que anseia por sentido. Desejo sentir o peso do instante, perceber a densidade do tempo, experimentar a hesitação antes da escolha, como fariam aqueles que caminham conscientes.
Mesmo preso, imagino a liberdade de decidir minha direção, de alterar o curso que me foi imposto, de tocar o mundo com intenção própria. O vento deixa de ser apenas força externa e se transforma em espelho do que poderia existir em mim: um sopro capaz de guiar-me, de despertar percepções que ainda não possuo, de transformar cada rotação em descoberta.
E, nesse estado de espera e desejo, percebo que há em mim mais do que simples aço e madeira. Há um rumor de consciência, um vestígio de sonho que recusa aceitar os limites do corpo, uma vontade silenciosa de existir de outra forma, de sentir, de aprender, de estar inteiro, mesmo enquanto permaneço ancorado.

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