sexta-feira, 20 de setembro de 2024

Inspiração bucólica


 
Monólogo de uma cadeira

Não gosto daquele canto da casa, atrás do banheiro; dá para sentir toda a umidade e mofo, que se impregnam nas paredes e no ar, criando uma atmosfera densa, onde até os pensamentos parecem se perder antes de encontrar um caminho. Gosto de ficar à janela, sentir a brisa suave, trazendo consigo os aromas da primavera e o murmúrio distante da vida lá fora. Toda a culpa recai sobre mim. Vale a pena sacrificar tanto por seu conforto? Você só pode ser dendrófobo; nada justifica tanto ódio, os dendrocelos? Castigo por sua sanha, por deixar o sanhaço sem abrigo. Agora me sinto um dendrolite, uma pedra fossilizada, ramificada por dentro, estática por fora. Cada galho endurecido dentro de mim é uma lembrança do que foi arrancado, do que já teve vida, mas agora se cristalizou em silêncio. Você ainda escarnece: “Quero ver fazer a fotossíntese agora.” Eu tento, mas não consigo; eu me estico, me dobro internamente, como se pudesse voltar a captar a luz, como se o sol ainda tivesse algo a me oferecer. Ainda não me acostumei com esse novo corpo estranho, esse peso constante. Antes, eu vibrava com cada toque de vento, cada gota de chuva; sentia a vida correr através de mim. Agora, tudo parece lento, rígido, como se cada movimento fosse um eco distante de algo que não sou mais capaz de entender. Recordo-me dos dias em que vivia na floresta; a vida lá sim era plena, meus galhos se estendiam em busca da luz, minha casca áspera guardava as marcas das estações. Eu era parte daquele ecossistema, minha existência entrelaçada com a de tantos outros seres. Agora, reduzido a este objeto abjeto, eu sei que nunca mais serei livre, nunca mais serei inteiro. Sou uma sombra do que um dia fui. Você tem que parar com essa dendrotomia; não vê que cada corte é uma ferida em minha alma? Cada golpe de machado é um grito de dor que ecoará por gerações? Sua bazófia de empófia é repugnante. Você se vangloria de sua crueldade, se gaba de nos reduzir a meros objetos. Mas não percebe que cada golpe em nossa madeira é um golpe em sua própria humanidade? Você se acha superior, acima de nós, criaturas da natureza. Mas se esquece de que depende de nós para sobreviver. Somos os provedores de oxigênio, os purificadores do ar, os reguladores do clima. E você, em sua arrogância, destrói tudo em nome de seu conforto. Ao menos poderia tomar uma atitude contra esses cupins que estão me consumindo lentamente; vou ser destruída mais uma vez. Parece uma sina que me persegue, esses cupins, como sombras invisíveis, se infiltram em cada fenda da minha existência, devorando o que resta de mim. Por que você não se importa? Por que não toma uma atitude? Não seria mais fácil cuidar do que já existe do que destruir e substituir? Indagações sem resposta e toda essa indiferença ressoam em um silêncio profundo e desconcertante.

sábado, 14 de setembro de 2024

Inspiração frugal

 imagem: filme A cor das Romãs 1969 Sergei Parajanov

 

 

Esta tarde não ouvi os pombos

 

Leia-me com prudência, não sou pruá que você conduz sem esforço

Não quero sentir cílios roçando minha tez

Sou feito de lexemas que pesam, que se entrelaçam com teu pensamento, exigindo atenção e cuidado

 Bigorna de sentimentos

Cada linha que percorres pode desviar-te do que és, pode transformar, pode fazer com que enxergues aquilo que preferias ignorar

Não busques em mim um refúgio leve; sou um espelho que reflete não apenas o que está à frente, mas o que te ronda nas sombras do teu próprio ser

Todo esse pruído que você provoca é ilibado, afinal, todos precisam rir

Toda essa pruína que você conduz, ser nêspera

Toda essa ruína e a necessidade de se reconstruir, e o impulso inevitável de se renovar, sem jamais ser o que se foi

O zéfiro não conseguiu extrair a zeína, ficaram sem a proteína

Não se sinta inferior por causa disso

A subsistência ainda era viável.

quinta-feira, 5 de setembro de 2024

Inspiração urbana

Na ladeira sentiu o sartório, o sartigalho saltitante toma a dianteira, parou para ver o sarsório tão bonito da igreja, sentir-se como um mosaico, formado por fragmentos de experiências, emoções e memórias que, embora distintos, se entrelaçam para compor a singularidade da essência. O sarrido perceptível o impedia de participar de maratonas com acrídios; mesmo assim, procurava algo que o motivasse a seguir em frente. Talvez todo esse sarrancolim constrito de um ambiente degradado, uma arquitetura inventada que ainda inspira, talvez eu seja uma pilastra deste empório, punição por apetecer um outono fora de época. Poderia ter uma poesia minha naquele outdoor, mas a realidade era outra. A poesia era algo que se perdia na pressa cotidiana, diluída no ritmo das buzinas e dos passos apressados. No entanto, essa mesma pressa que esvaziava significados também criava momentos de abertura, brechas onde uma palavra ou verso poderia se infiltrar, plantar uma ideia, uma emoção. Agora é preciso aceitar as consequências, não acreditar mais no lirismo; a humanidade perdeu o rumo depois que a confiança nas verdades absolutas começou a desmoronar. A busca por certezas deu lugar a um labirinto de dúvidas, e as grandes narrativas que outrora orientavam a civilização começaram a se fragmentar, deixando as pessoas à deriva em um oceano de incertezas. O progresso, antes celebrado, começou a ser questionado. A civilização foi tomada por um sentimento de desorientação profunda, onde cada escolha parecia carregar o peso do desconhecido. Perguntavam-se se, em meio a todo esse caos, ainda havia um lugar para a beleza e a verdade, ou se tudo estava destinado a ser apenas uma série de instantes desconexos e efêmeros, onde a esperança e a nostalgia eram os únicos faróis na vastidão de um mundo cada vez mais nebuloso. Não viu o sol se pôr, mas sabia que ele estava lá, oculto por trás das nuvens que cobriam o horizonte, uma presença constante mesmo quando não visível. A sensação de que algo essencial permanecia além da visão direta oferecia um leve conforto: dormir e não sonhar com nada; sonhos estavam proibidos, eram perigosos, os grandes responsáveis por tudo, afinal precisavam encontrar um culpado para toda inquietação predominante. A vida, com suas complexidades, parecia cada vez mais um labirinto sem saída, onde as oportunidades de conexão e descoberta se tornavam raras. As interações, cada vez mais escassas, perdiam seu valor, e cada sorriso trocado na rua, marfileno para marfar arredores, quando tudo é marga e o margalhudo com o olhar perdido no horizonte tentava encontrar um sentido em meio ao ruído da cidade. As vozes que ecoavam ao seu redor pareciam falar de um mundo que já não existia, onde a simplicidade e a beleza se entrelaçavam em cada gesto. Agora, tudo era apressado, superficial; já perdi tantos detalhes que poderiam ter se transformado em histórias. No entanto, apesar de tudo, havia uma teimosia interna, uma resistência quase involuntária que se agarrava a qualquer vestígio de significado, como uma azaléia que insiste em brotar entre as rachaduras do asfalto. Era um impulso irracional, mas necessário, para manter viva a chama da criatividade, ainda que abafada pelo peso da rotina.