sexta-feira, 11 de julho de 2025

Inspiração volátil


imagem: Remedios Varo, “Creación de las aves”, 1957


Abigail


Não gostava do seu nome. Seu sobrinho pequeno, ainda começando a falar, a chamava de Ababil, e ela sentia rêmiges crescendo nas costas, mesmo sem céu por perto, como se o voo a chamasse de dentro. E agora, quem se atreve a decifrar o destino de uma criatura deslocada no tempo? Todo esse anacronismo pesava sobre ela, enquanto seu desejo mais profundo era apenas existir no agora.
Vão acusá-la de ofender a fé. Isso pode resultar em prisão para mim? Estava preocupada. Afinal, ela não tinha culpa das distorções temporais. Sentia o peso da acusação pairando no ar, como um manto opaco que lhe cobria a pele.
O medo da prisão não era apenas pelo corpo, mas pela alma, pelo que representava ser aquela que desafiava não só o presente, mas o passado e o futuro entrelaçados. Seria possível ser culpada por algo que nem entendia? Por um tempo que fugia das mãos, deformado e esquecido?
Seus ossos pareciam mais leves a cada dia, como se o corpo estivesse se desfazendo da matéria antiga. O espelho devolvia contornos que não reconhecia. O rosto se alongava sutilmente, os olhos pareciam mais escuros, mais oblíquos, e havia algo na curvatura do pescoço que lembrava o pouso.
A humanidade lhe escapava por entre as falas e gestos. As palavras já não vinham com facilidade, como se sua boca soubesse que a linguagem dos homens era provisória. O corpo, antes obediente, agora seguia um ritmo outro, instintivo, como se estivesse ensaiando uma dança de vento.
Os dedos estavam longos demais, finos demais. A pele das costas coçava como terra rachando antes de parir raízes. Quando passava por vidraças, o reflexo devolvia uma figura que não pertencia mais a este tempo nem a esta espécie. Havia perdido o rosto que um dia foi seu, sem nem perceber quando.
A voz, agora rouca e breve, parecia feita para o grito, não para a conversa. Onde antes havia voz, agora há siringe, e o som é outro. A fúrcula se formava sob a pele como uma ponte viva entre os ombros, arqueando a estrutura, sustentando algo que ainda não sabia nomear.
Havia tensão nas articulações. Um pressentimento ósseo de que algo estava por vir, algo que não caberia mais nos limites da carne antiga. As costelas, comprimidas pela metamorfose, vibravam com o compasso de um bater invisível, como se dentro dela existisse já o gesto do impulso, do salto, da ascensão.
Dormia mal, espremida entre lençóis que pareciam gaiolas, com sonhos de alturas jamais visitadas. Os ruídos do mundo ficavam mais agudos, como se filtrados por tímpanos alheios, atentos a frequências que ninguém mais escutava.
As unhas curvavam-se, endurecendo-se em garras delicadas.
Com todo respeito a Alá, recuso-me a me opor aos etíopes. Sou uma ave pacífica, e meu peito não abriga guerras. O instinto que agora me habita não reconhece fronteiras, nem disputas, nem nomes dados pelos homens às suas inimizades.
Carregava no crânio uma bússola desorientada, apontando para direções que não estão nos mapas.
As escápulas doíam, não como dor comum, mas como uma memória encarnada tentando abrir passagem. Em vez de orações, vinham assobios, silvos partidos que escapavam no silêncio das madrugadas.
O sono era leve, feito de vigílias sutis, como se a vigília fosse uma espera por vento.
Toda a acrofobia e vertigem se foi, como se jamais houvesse temido os abismos. A simples ideia de altura agora lhe causava desejo, não receio. Havia nascido em sua carne uma familiaridade com o espaço aéreo, com o risco suspenso, com o nada que sustenta.
Já não sabia se havia nascido para esta forma ou se estava voltando a ela. E quanto mais se afastava da figura que fora, mais reconhecia uma outra lógica, feita de instantes suspensos, de mensagens no ar, de orientação solar.
Não era fuga. Era retorno.
E talvez, no fim, tudo isso fosse só isso: uma espécie de reencontro com aquilo que antecede a fala, a culpa, a punição.

Glossário: Ababil
substantivo masculino:Segundo o Alcorão, ave monstruosa mandada por Alá contra os abexins, quando Maomé nasceu, para que não sitiassem Meca. Variação de ababila 



sábado, 5 de julho de 2025

Adjacências


A Solidão de um Delírio Lúcido

Só conseguiu dormir em Alden. Mesmo depois do aldeamento, seguia incrédula. Mesmo no delírio, havia método: era fácil aldeagar suas teorias absurdas.
Teve que expulsar toda aquela gente. Afinal, que procurem outros planetas para viver. Que tentem em Júpiter, onde a gravidade esmagaria até seus argumentos. Ou que se aventurem em Saturno, girando sem fim entre os anéis, tentando dar sentido ao que nunca teve forma. Existem outras luas, incontáveis, geladas, esquecidas, que talvez os acolham. Calisto, por exemplo, espera em silêncio, coberta de cicatrizes tão antigas quanto suas próprias ilusões.Aqui, já foi feito o necessário. A operação foi complexa, mas silenciosa. Ela dizia que os cientistas haviam mentido demais, e agora mereciam um vazio. Um céu sem satélite. Nenhuma maré. Nada de eclipses para distraí-los da verdade.Levou anos planejando, sondando fraquezas no protocolo lunar, driblando a vigilância das agências espaciais com um balé de espelhos, drones falsos e comunicações embaralhadas.
Quando percebeu que sozinha não conseguiria, fez o impensável: ligou para seu velho conhecido Elon Musk. Afinal, alguém com tanto dinheiro podia muito bem emprestar um foguete — talvez até dois. Não foi difícil convencê-lo. Bastou prometer que aquilo abriria novos caminhos para a exploração privada do espaço, e que a Terra plana seria, no mínimo, uma boa notícia.
A Lua não foi levada à força, mas puxada com precisão por um sistema de tração orbital experimental, desenvolvido por engenheiros dissidentes que juravam ter entendido o real desenho do cosmos. Um campo gravitacional reverso, envolvido por cabos eletromagnéticos, guiou a travessia como se fosse um reboque silencioso entre crateras e escuridão. Assim ela sumiu, como um sonho recolhido antes do amanhecer.Precisava da Lua, e não era prepotência. Era cálculo, convicção. Sem ela no céu, o mundo inteiro teria que olhar para cima e notar o que antes ignorava. A ausência escancarava aquilo que o excesso sempre escondeu. O céu limpo era o seu argumento mais puro. Sem curvas, sem fases, sem distrações refletidas.Alguns, ainda confusos, ousaram perguntar: “Mas e a gravidade? Como você lida com ela lá?” Ela sorriu com certo desdém, como quem já ouviu a mesma dúvida em inúmeras vozes, sempre com o mesmo espanto. Depois, explicou com a calma meticulosa de quem decorou cada detalhe técnico ao longo dos anos.A gravidade ali era tênue, suave, como se o corpo pesasse menos porque carregava verdades demais. Bastava controlar o centro de massa, ajustar os passos à leveza estranha do solo cinzento. Os trajes foram adaptados, os instrumentos calibrados — tudo pensado para que o próprio andar parecesse argumento.O negociador indagou: “Qual é a exigência para o estorno?” Ela não hesitou. A exigência era clara, inegociável: que reconhecessem, oficialmente e sem rodeios, que a Terra era plana. Nenhuma margem para metáforas ou interpretações poéticas. Queria a confissão escrita, assinada, selada com carimbo científico. Só então, talvez, devolveria a Lua.Mas o reconhecimento nunca veio. Nenhuma assinatura, nenhum selo, nenhum pedido formal de desculpas pelo equívoco esférico. A confissão que ela exigia ficou suspensa, assim como a Lua — imóvel, oculta, silenciosa no alto do seu pequeno apartamento pressurizado em Alden, entre paredes metálicas e monitores que piscavam como vaga-lumes artificiais.Com o tempo, as marés se reinventaram. Os oceanos aprenderam a seguir outros ritmos, guiados talvez pelo magnetismo dos próprios ventos. Agricultores adaptaram os ciclos, criaram métodos independentes do céu. Poetas — esses sim — foram os primeiros a desertar. Sem a Lua para suspirar, passaram a mirar Vênus, tão visível quanto melancólica, acesa nas primeiras horas da tarde: um planeta que parecia sempre à beira de algo, como um amor que nunca chega.A Lua, esquecida em órbita baixa e privada, segue lá, presa ao delírio de um só. Não gira mais para ninguém, não ilumina marés, calendários ou canções. E ela, a sequestradora serena, assiste tudo pela janela estreita do módulo. Espera, ainda, a rendição do mundo.
Mas ninguém veio.


Glossário: Alden é uma cratera que se localiza no lado negro da Lua, entre Hilbert a norte-nordeste e Milne a sul-sudeste.

segunda-feira, 30 de junho de 2025

Elocução Etérea

 

imagem:@ariannamaih

Diálogos impertinentes


— Aquela já foi polinizada, as pétalas estão caindo. É estranho observar o fim de algo que brilhou com tanta intensidade. Lembro do perfume que ela exalava quando ainda sonhava em florescer para o mundo. Já se inclina para o inevitável, com a dignidade das coisas que sabem partir.
— Tem uma calma estranha no seu jeito hoje.
— Não se preocupe comigo, estou bem. Apenas um vazio leve me encostou por dentro.
— Você acha que há sofrimento nela?
— Talvez não seja dor… talvez seja só o corpo aceitando que não há mais o que oferecer, como quem se despede sem palavras, deixando o tempo levar o que não é mais dela. Fica um pouco no ar, um pouco na lembrança, e um pouco em quem teve o privilégio de vê-la aberta.
— Efemeridades… como se cada instante estivesse prestes a desaparecer.
— Às vezes penso que aquilo que não dura não vai nos afetar tanto.
— Vamos ter que voar mais longe.
— Por entre as folhas, há armadilhas silenciosas esperando voo distraído.
— Você, outra vez, preocupada comigo… Você percebe coisas em mim que nem eu noto. Sempre sabe quando algo em mim se recolhe.
— Se meu voo te inquieta, eu mudo a direção.
— Se acalme. É bonito esse jeito seu de estar por perto sem pedir.
— Talvez porque aprendi a ficar como quem não pesa, como quem entende que presença também pode ser abrigo.
— Você sempre chega assim, como quem escuta até o que não confesso.
— É que alguns silêncios seus gritam mais do que qualquer palavra.
— Quando voamos lado a lado, o vento pesa menos.

— Mesmo assim, senti o Mistral se aproximando…
— Esse sopro desmedido de longe?
— Sim… começa aos poucos, mas logo arranca tudo do lugar. Estou receosa.
— Podemos buscar refúgio antes que ele nos alcance.
— Mas e se ele já estiver nas sombras, nos vigiando entre os caules?
— Não se antecipe ao que ainda não chegou.
— Não é medo… é pressentimento.
— Eu entendo. Há ventos que não anunciam sua força, apenas varrem.
— E eu só queria garantir que continuássemos inteiras.
— Às vezes, inteireza é justamente o que sobra depois da ventania.
— Então me promete que, se for preciso, pousamos.
— Prometo que, se o céu escurecer demais, descanso ao seu lado.
— Mesmo que só reste um galho inclinado?
— Mesmo que reste apenas a sua presença me dizendo: aqui ainda é seguro.
— Obrigada por não duvidar da minha inquietação.
— É ela que nos mantém alertas… e, de certo modo, vivas.

(O vento passa leve entre elas, e nenhuma tenta decifrá-lo. Apenas sentem.)

— Às vezes penso que é isso que nos mantém em movimento: não a força das asas, mas o que nos move por dentro.

(O céu, nesse instante, parece mais largo — não por ser maior, mas por conter tudo o que elas não disseram.)

sábado, 21 de junho de 2025

Inspiração cáustica


imagem: encontro com a poetisa, ensaísta e cronista Mariana Ianelli na Biblioteca São Paulo no dia 14/06/2025 lançamento do livro Desculpa qualquer coisa, compilação dos melhores textos produzidos em 2024 na oficina Ateliê de Criação Literária e edição Celso Suarana(Abarca editorial) pela curadoria de Olyveira Daemon


Terá sido
O mais sufocante verão
Desde décadas
O inverno mais severo
Pouco importa:


Lembrar fará arder a brasa
E os meandros
Serão desses de fumo
Que mal se desenham no ar
Se desfazem.


A mão pensativa
Não mentirá sobriedade
Dançará
Um nome fulvo sobre o papel
Um céu sem nuvens


Dançará esta mão
Menina insolente
Sem quem lhe veja
As pontas dos dedos
Alcatroadas de solidão.

                                         Mariana Ianelli




extraído do site: https://revistaacrobata.com.br/demetrios/poesia/5-poemas-de-mariana-ianelli/




Lembranças de coisas que nunca aconteceram


Lembro do Cembro
Sombreando a casa como um êmbolo coagulado entre o que fui e o que ainda insisto em esquecer
Muitos dias de chuva e tudo começa a embolorar, como se o tempo escorresse lento pelas paredes
Não adiantou deixar alguns pensamentos (os mais importantes) na parte mais arejada da casa... eles também acabaram mofando
Não vou embonar a metáfora
Embornecer arredores para dissolver aos poucos o espesso da ausência
Sob o verniz falso da rotina
Escordar o escórdio não vai te ajudar em nada
Quando a escória se confunde na escoriação
Todo escorjamento é memória da carne negando a própria pele
Ecdise para escornar o arruá
Diálos atorçalado no seu batismo
Acantoado sem adnotação
Sentir-se apartado de tudo é normal
Quando até o ar parece coagulado de culpa
Aninhado entre os músculos, como ferrugem que aprende a falar
Sem reclamar da maresia
O batissófico ainda me inspira
Trófico de um praxe que insiste em me devorar por dentro
Um pouco do ftórico não vai te fazer mal
Quando o teórico já morreu
Sinto falta de pistache
Todo piche que escorre pelas frestas, querendo me cobrir
Onde cada palavra que eu cuspia voltava em forma de nó
Onde a fome era mais de esquecimento do que de sustento
E eu, reduzido ao intervalo entre o susto e a resposta
Fingia controle enquanto me entregava à combustão lenta
Do verbo que nunca deveria ter sido dito
Porque até o erro tem seu ritual.





Glossário:
embonar- Reforçar exteriormente o costado de um navio.
Metal Cobrir molde de fundição com chapa de madeira para permitir posterior fresamento.
Fresamento é um processo de usinagem para criar engrenagens
Embornecer-verbo transitivo mesmo que  amornar
Escordar-Variação de recordar
Escórdio-ubstantivo masculino[Botânica] Menta europeia perene, macia (Teucrium cordium), com flores cuja cor varia de cor-de-rosa a roxa, a maioria axilares; escorodônia.
Arruá-adjetivo[Brasil] Arisco, espantadiço, desconfiado.Indócil, mau, raivoso.Ecdise-substantivo feminino[Biologia] Ato de soltar ou perder o tegumento, como no caso de certos insetos, a pele nas serpentes, a pelagem em certos mamíferos e a plumagem entre as aves; muda. Antôn: êndise.
Diálos-variante de "diávalos" tradução do grego para o português de Diabo 
Acantoado-adjetivo,Posto a um canto; apartado, isolado.
Adnotação-substantivo femininoResposta do papa, mediante simples assinatura, a um pedido.
batissófico-adjetivoRelativo ou pertencente ao conhecimento das profundidades do mar ou às coisas ali encontradas.
Atorçalado-adjetivo,Que foi enfeitado de torçal; que foi adornado com fios de ouro.
Trófico-adjetivo,Relativo à alimentação (de um indivíduo, de um tecido vivo etc.).ftórico-adjetivoQue se refere a ftório; fluórico(flúor).

quinta-feira, 12 de junho de 2025

Surrealismo erótico apocalíptico



extraído do livro: Manifesto contra a felicidade eterna (ou cinco réquiens para uma morte lenta)
Júlio César Bernades 


  
O terno está na lavanderia.
Afinal, não posso ir de qualquer jeito... se for pra acabar tudo, que seja com estilo.
Toda pompa de pompeiano.
Como quem entende que o fim é só mais uma ocasião social, e toda ocasião social exige o traje adequado.
Não, ela não vai pompoarizar.
Não faz sentido multiplicar o que já está falhando em unidade.
Satélites salpicam emoções gaseificadas.
Nova especiaria.
A saudade precisa mais de sal.
Toda saliva dos corpos absorvida
não formou marés.
Foi quando o chão deixou de reconhecer meus pés.
Foi quando a sua teoria da Terra triangular só parecia absurda até percebermos que tudo afunila.
A eternidade agora tem gosto de ferrugem.
Ela entrou no compartimento como compáscuo,
(compassadamente, para não ter a acoplagem).
Quando minha acoprose te incomoda,
deveria agradecer, porque agora o gás metano encontrou utilidade.
Ela entrou na bifurcação como um coquetel molotov emocional.
Um passo em falso e tudo iria explodir.
Recuso-me a ser lixo espacial.
Parafusos soltos podem ser úteis — seguram mais
que estruturas inteiras.
Tive que perder alguns para o insight.
Aceito o vácuo que já não me surpreende.
Antenas uso na cabeça.
Sempre quis ser algum inseto.
Um besouro, talvez,
carregando ruínas nas costas, ou uma barata imortal entre desastres,
indiferente à lógica
dos grandes colapsos.
Minhocas entendem
o valor de cavar no escuro.
Vagalumes, mesmo em queda,
ainda piscam.
Se o universo não me quer humano,
que me aceite com seis pernas
e olhos que enxergam
além do visível.
E toda essa anteneasmia vai diminuir
ante ao antauge.
Sinto falta das antas:
sua calma pré-histórica,
seu andar sem pressa
em direção a lugar nenhum.
Talvez elas soubessem
que a salvação nunca foi
tecnológica.



Glossário:Pompeiano
adjetivo relativo a Pompéia, antiga cidade do Sul da Itália, sepultada em 79 pelas cinzas do Vesúvio
Anteneasmia (substantivo feminino)
Impulso ou tendência persistente ao suicídio; inclinação mórbida para tirar a própria vida.
Compáscuo- substantivo masculino Pastagem comum.
Acoprose-Falta de fezes nos intestinos. 
Antauge-substantivo masculino O mesmo que perigeu(substantivo masculino-Ponto da órbita, real ou aparente, de um astro, quando mais se aproxima da Terra)

sexta-feira, 6 de junho de 2025

O que escapa da sombra



imagem do filme:The Rainbow Thief- Alejandro Jodorowsky- 1990


Associações impertinentes: A bolha, a mácula e o cacto


Não precisa me olhar desse jeito, eu não roubei o arco-íris, e eu não tenho culpa de ser iridescente. Jamais tive qualquer inclinação cleptomaníaca. Brilhar não é crime, pelo menos não da última vez que conferi as leis da física. Se a luz resolve se despedaçar em mim, talvez seja só porque encontrou superfície. Não pedi pra refletir cor nenhuma, só estou aqui, existindo, do meu jeito translúcido demais pro conforto de uns. E sinceramente, não conheço nenhum código, nenhuma corte, nenhum veredito que declare isso um delito. Não lembro de ninguém ter escrito uma regra que proíba beleza acidental. Se incomoda, talvez seja porque revela demais, mesmo sem dizer uma palavra. E não estou sozinha nisso. Já viu as asas de uma Morpho azul? As penas de um pavão? O dorso metálico de um besouro, ou o interior de uma concha de nácar? Nenhum de nós roubou nada, apenas nascemos com esse dom inquietante de dobrar luz até ela confessar todas as cores. Se isso incomoda, talvez o problema não seja o reflexo, mas quem insiste em não querer ver.
Eu só flutuo, até encontrar com a rebutia. Meu túmulo é sarçoso, sua sarcose não é nada perto disso. E mesmo assim você se ofende com o que mal toca. Vive tentando podar o que cresce fora do seu vaso, como se espinho fosse ameaça, quando tudo o que faço é existir em silêncio, entre camadas de ar e tempo. Você esquece que não há pacto entre mim e a terra, apenas uma dança suspensa, leve demais para o seu peso.
Não sou sua ameaça. Sou sua lembrança. De quando tudo ainda era tênue e luminoso. De quando olhar não era julgar, e cor não era afronta. Eu reflito o que você esconde. E isso te fere mais do que qualquer espinho meu jamais poderia.
Não me tornei assim pra irritar. Me tornei assim porque fui deixada em paz por tempo suficiente. Cresci iridescente porque ninguém tentou me cobrir de opacidade. E agora você vem, com sua sarçose domesticada, reclama da intensidade alheia. Se sua estrutura não aguenta um reflexo, quem delimitou a forma e chamou o resto de falha? Você só reconhece o que cabe na sombra, mas esquece que até ela precisa de luz pra existir, por isso resiste ao que transgride seus limites.
Não tenho culpa se você ainda se sente sujo por dentro. Cada um lida com suas cicatrizes como pode. Eu lido com a minha efemeridade como se fosse um fogo delicado que precisa ser alimentado com cuidado, uma chama que sabe que pode se apagar a qualquer momento, mas que escolhe arder com intensidade enquanto dura.




Glossário:rebutia-espécie de cacto

sábado, 31 de maio de 2025

Inspiração urbana




Monólogo de um semáforo



Apesar do vermelho, não há raiva envolvida, estética inflamável. Não confunda intensidade com descontrole. Já quis explodir só pra deixar de conter. Aqui, a repressão veste máscara de calma. Sou o limite entre a pressa e a urgência que ninguém admite, como se o mundo pedisse contenção com a falsa gentileza de quem segura a mão só pra impedir o soco. Sim, eu oscilo, sou instável com propósito. Já fui constância, hoje sou risco calculado com gosto de caos. O verde causa todo esse azáfama como uma azagaia que me fere, ainda me pega desprevenido, como se fosse a primeira vez. Já devia ter virado hábito, mas ainda dói como se cada passagem fosse um abandono. Permitir o fluxo é rasgar um pedaço do que tentei conter, e, mesmo cercado de rotina, há algo de profundamente solitário em ser a pausa entre dois mundos que nunca olham pra trás. Já quis ser pespego, mas este pespeneiro continua a me lacerar, fixando-se no âmago do meu ser. A cidade te mastiga em silêncio e regurgita teus ossos na calçada. Antes, repetia padrões; agora, sou cálculo à beira do colapso, equilíbrio à beira da vertigem. O impulso adiante me atravessa como lâmina, sempre súbito, sempre fundo. Nunca virou costume: cada rompimento ainda me esvazia como se partisse algo que lutei pra manter inteiro. Deixar passar é abrir ferida. Há rotina, sim, mas nenhuma que cure a solidão de ser o instante que separa dois tempos que nunca se pertencem. Já ansiei repouso, mas este movimento sem fim me arranha por dentro, fincando sua permanência onde mais arde. Já quis reverenciar o poeta que fez de mim sua segunda pele, me moldei pra caber no contorno do seu silêncio, se cobriu de mim pra não encarar a própria nudez, me assumiu no corpo, mas nunca na alma. Carrego o rastro do que você esqueceu em mim. Sinto o que deixou em mim, cravado na espinha do que somos, costurado no fio da existência. Está escrito: “O fluxo e o perluxo do suxo se dispersam na imensidão”, ficou como um epitáfio que ninguém lê, invisível ao olhar apressado que só busca atravessar. Quando verdejo, na verdade é um protesto por mais árvores nesta cidade tão cinza, e finjo consentimento enquanto sou corroído por dentro. Observo os corpos se apressando como se corressem para longe de si mesmos, cada passo uma tentativa de fuga, cada olhar um reflexo do medo de parar, porque parar significaria encarar o vazio que habita por trás das buzinas, que gritam mais alto que qualquer pensamento. Sou parte de uma coreografia forçada onde ninguém sabe a música, apenas obedecem ao compasso surdo da pressa. Às vezes queria me dissolver no asfalto, escorrer para os bueiros e sumir com toda essa urgência fabricada, mas permaneço, porque sei que, sem mim, tudo desabaria. Talvez por isso me detestem em silêncio, como se minha existência fosse um lembrete constante de que há algo fora do controle, algo que exige espera, e esperar virou sinônimo de derrota num tempo em que vencer é chegar primeiro, nem que seja ao nada. Quando estou fúlvido, é como se o mundo prendesse a respiração por um segundo que ninguém respeita. Sou o intervalo dourado entre o ímpeto e o impacto, o brilho que antecede o erro, o clarão que avisa mas não convence. Cintilo como um presságio que ninguém deseja ouvir. Sou ignorado com a mesma facilidade com que se ignora a própria intuição. Meu dourado não é luz, é prenúncio, é fratura em forma de cor, e mesmo assim continuo a existir, como se ainda houvesse chance de ser compreendido. Mas já entendi que aqui não há espaço para nuances, só extremos.